A lei que libertou a população escravizada, em 1888, não contemplava ou garantia direitos humanos básicos àquelas pessoas, tampouco contribuía para reparar todas as hostilidades sofridas por quase quatro séculos. Desassistidos, os ex-escravos eram obrigados a enfrentar subempregos, ausência de assistência e condições que os deixavam à frente da marginalidade.
A compreensão desta constante conjuntura de exclusão, acompanhada do histórico de pobreza, permite elucidar sobre a frequência da população em situação de rua – que vem aumentando consideravelmente no decorrer dos últimos anos. Dados de Boletim Epidemiológico publicado recentemente pelo Ministério da Saúde e do estudo “Estimativa da População em Situação de Rua do Brasil” – elaborado pelo Instituto de Pesquisas Econômica e Aplicadas (Ipea) – apontam que o total de pessoas em situação de rua pelo País, em março de 2020, já era de 222 mil, 139% a mais que no mesmo período de análise em 2012.
Com concentração nos municípios com mais de 100 mil habitantes, a região Sudeste lidera a lista, com 56,2% do total do País; seguida do Nordeste, com 17,2%; e Sul, com 15,1% – conforme as informações dispostas na Consulta, Seleção e Extração de Informações do CadÚnico, de março de 2020.
Vale destacar que desemprego, crise econômica, vício em álcool e drogas, transtornos mentais e conflitos familiares são alguns dos principais fatores que levam indivíduos às ruas e lá as mantêm – e que esta era uma realidade já no cenário pré-pandêmico, condição que ficou agravada com a chegada do novo coronavírus. Ademais, a crise sanitária, acompanhada da instabilidade econômica, foi fator fundamental para o aumento no desemprego, consequentemente levando algumas pessoas às ruas.
“As pessoas em situação de rua, hoje, representam a continuação e o agravamento de uma situação que exige uma solução da sociedade como um todo – sejam médicos, autoridades ou população civil. O aumento do desemprego, concomitante à crise sanitária ocasionada pela pandemia de coronavírus, levou muitas pessoas às ruas, representando a agudização de um processo crônico”, destaca Silvano Raia, titular da Academia Nacional de Medicina e ex-secretário municipal de Saúde de São Paulo.
Segundo o CadÚnico, 87% das pessoas em situação de rua são do sexo masculino, enquanto 13% são do sexo feminino. É necessário frisar ainda que os dados apontam que 68,2% das pessoas que se encontram em situação de rua são negras. A sondagem indica também que a faixa etária majoritária dessa população é de cidadãos de 18 a 59 anos, com ensino fundamental incompleto.
A combinação de tal sequência de fatores só aumenta a vulnerabilidade de um grupo de pessoas que vive às margens da sociedade, exposto a doenças infecciosas, violência, condições climáticas adversas – como o frio intenso, por exemplo –, entre outros fatores que ameaçam tanto a integridade física quanto a psicológica da comunidade.
O presidente da Associação Paulista de Medicina, José Luiz Gomes do Amaral, ressalta que a questão é mundial, e se concentra especialmente nas cidades com os maiores índices de desenvolvimento [leia também a palavra do presidente na pág. 4]. “Se olharmos as Américas, por exemplo, temos Nova York como a cidade com a maior concentração de pessoas em situação de rua. O problema é bastante complexo, devendo ser tratado em seus mais diversos aspectos, e a população em situação de rua é heterogênea, de forma que as soluções precisam ser ofertadas de acordo com a necessidade de cada indivíduo.”
“Houve uma piora da situação econômica em todo o País, e principalmente nas regiões metropolitanas. A gente observa isso claramente aqui em São Paulo e faz com que entendamos que a abordagem das pessoas nesta situação não se limita apenas aos profissionais da Saúde, mas à sociedade e aos profissionais de diversas esferas como um todo”, afirma o médico de família e sanitarista Paulo Fontão, conselheiro fiscal da APM e atuante na Atenção Primária da UBS Vila Nova York.
De acordo com ele, a população em geral precisa estar disposta a se abrir e sair dessa condição de medo, preconceito e repulsa. “É necessário interromper a ideia de que aqueles que estão em situação de rua estariam ‘sujando’ as cidades com a sua presença, porque todos são seres humanos que precisam de ajuda e atenção. Eles são parte da nossa nação e as pessoas não podem ser vistas como ‘sujeira’ ou de outras formas pejorativas diante da sociedade. Então, fazer com que se sintam acolhidas já seria um grande passo para uma mudança de cenário.
O Censo da população de rua, realizado em São Paulo periodicamente – e programado para ter a sua próxima edição divulgada em 2023 –, teve que ser adiantado em face do estado de alarme. A pesquisa comprovou aquilo que diariamente está diante da sociedade: de fato, há mais pessoas vivendo nas ruas.
Ao final de 2021, o número de pessoas em situação de rua era de 31.884, o que representa um aumento de 31% em comparação com o último levantamento realizado. Todavia, a proporção tende a ser muito maior, levando em consideração o número de casos subnotificados.
Além disso, o novo Censo em São Paulo demonstra que 18,1% da população em situação de rua estavam nessas condições há menos de um ano, comprovando que os resultados econômicos deixados pela pandemia já são catastróficos.
Levando em consideração o levantamento, 96,44% dos que estão nas ruas são brasileiros, sendo apenas 3,56% estrangeiros. Além disso, 39,2% nasceram na cidade de São Paulo, 19,86% são de outros municípios do estado e 40,94% são das demais unidades federativas do Brasil – principalmente Bahia (8,47%), Minas Gerais (5,44%) e Pernambuco (5,28%).
Foi observado que o bairro que mais registrou alta na população em situação de rua é a Mooca. O local teve um aumento de 170% em dois anos. Os indivíduos que estão nas ruas acabam se concentrando, em sua maior parte, nas regiões próximas ao centro por motivos que tangem à facilidade de locomoção, alimentação e oportunidades de trabalho. Ademais, a investigação também apurou que houve crescimentos consideráveis na população em situação de rua nas seguintes regiões: Perus, Vila Maria, Vila Guilherme, Santana e Tucuruvi, na Zona Norte; Penha, Itaquera, Ermelino Matarazzo, São Miguel Paulista, Sapopemba, Guaianases e Itaim Paulista, na Zona Leste; além de Ipiranga, Vila Mariana, Jabaquara e M’Boi Mirim, na Zona Sul.
“Andar nas ruas de São Paulo hoje, não só no centro, mas em vários bairros, é muito sofrido para quem tem um pouco de humanidade no coração. A Prefeitura está trabalhando com um número em torno de 32 mil, mas a minha sensibilidade é de que está subestimado, e isso traz um desafio enorme. Cada dígito da economia que anda para trás joga milhares de pessoas para as ruas. O morador de rua de 10 anos atrás não é o mesmo de hoje. O que antes era uma situação individualizada de pessoas, hoje temos famílias inteiras”, argumenta o médico e ex-vereador da cidade de São Paulo, Gilberto Natalini.
Projetos sociais
Até a década de 1980, o Brasil não tinha programas e estratégias de acolhimento e cuidado para as pessoas que estão vivendo em condições de miséria e extrema pobreza nas ruas. Foi através de uma grande luta por parte de movimentos sociais – a fim de proporcionar uma mudança de cenário – que algumas medidas passaram a ser tomadas. Nesse sentido, a Política Nacional para a População em Situação de Rua, de 2009, se constituiu como a primeira ação que buscou tratar sobre o tema em questão, passando a regulamentar o acesso à assistência por parte das pessoas que estão nas ruas.
A partir dela, passou a ser desenvolvida a estratégia Consultório na Rua (CNR) – criada como projeto do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto (Bompar), ao lado da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo –, em 2011. O objetivo da proposta é expandir a possibilidade das pessoas que estão nas ruas acessarem os serviços de Saúde, distribuindo atenção integral a um grupo em situação de extrema vulnerabilidade.
O Consultório na Rua atua por meio de equipes multiprofissionais que elaboram diferentes ações voltadas à Saúde, levando em consideração as diferentes necessidades do grupo que será atendido. As atividades ocorrem de maneira itinerante, em bases médicas sob rodas, em parceria com as diferentes equipes de Unidades Básicas de Saúde de cada região.
Além da promoção e acesso à Saúde, o CNR também atua no desenvolvimento de vínculos com a população em situação de rua. “Ações como o Consultório na Rua só conseguem promover qualquer tipo de intervenção a partir do momento em que as pessoas querem sair da rua. O vínculo, cuidado e bem-estar que os programas de governo e os projetos da sociedade civil acabam promovendo essa possibilidade de a pessoa querer sair da rua”, destaca Marta Regina Marques, gestora do projeto – que ainda promove o acesso à cultura, por meio de oficinas artísticas que englobam música, pintura e dança, entre outras atividades.
Conforme reportagem da Folha de São Paulo, em dezembro de 2020, graças às ações do Consultório na Rua foi possível evitar o extermínio da população que está nas ruas durante a ascensão do vírus da Covid-19. De março a outubro de 2020, 135.937 avaliações foram efetuadas com o objetivo de identificar novos casos de coronavírus nas populações que estão nas ruas. As ações do grupo permitiram que os pacientes pudessem ser hospitalizados. Houve mais de 900 internações, monitoradas pelos hospitais de retaguarda, contribuindo para que fosse evitada uma catástrofe.
Mesmo com uma proposta efetiva de cuidado, o CNR ainda enfrenta uma série de desafios – por exemplo o preconceito com quem está nas ruas e a dificuldade de acesso desta população aos serviços públicos. Outro fator que dificulta a execução do trabalho social é a falta de documentação e a ampla burocracia para conseguir ofertar um tratamento de qualidade, bem como o possível retorno às drogas e a desistência dos pacientes.
“Eu vejo o Consultório na Rua como uma experiência modelo, mas que ainda precisa de ajuda. Uma questão que nos afeta muito é a do prontuário de acesso remoto, porque hoje um profissional da Saúde vai para a rua sem a possibilidade de poder identificar quem é aquele paciente com que está lidando. Falta informação de qualidade, e o acesso ao pouco que já se tem é difícil”, explica Paulo Fontão, que chegou a atuar na iniciativa.
Segundo o médico de família e comunidade, uma pessoa pode ser cadastrada como população em situação de rua na região da Brasilândia, por exemplo. No entanto, tal dado teria de ser acessível para todos os trabalhadores que constituem o Consultório na Rua no município, já que a pessoa pode migrar para outros bairros.
O diretor de Responsabilidade Social da APM, Jorge Carlos Machado Curi, enaltece a atuação das muitas instituições que tentam ajudar a resolver parte dos problemas – a exemplo das comunidades terapêuticas para os usuários de álcool e drogas. “Entretanto, falta continuidade às ações e uma política de Estado, que não mude a cada novo governo ou tente fazer milagres em pouco tempo, como ocorre hoje”, acrescenta.
Outro projeto social que vem sendo pensado no intuito de amparar aqueles que atualmente se encontram nas ruas é o Programa Reencontro, elaborado pela Prefeitura de São Paulo. Durante Audiência Pública em 9 de junho de 2022, o secretário Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, Carlos Bezerra Junior, apresentou a versão piloto do projeto, que planeja se localizar em um terreno da própria Prefeitura, localizado no bairro da Armênia, próximo ao Centro da cidade. O espaço contará com 350 unidades e 1.200 leitos, sendo liberados cerca de R$ 25 milhões para a sua execução.
A construção de cada casa modular – com quarto, cozinha e banheiro – terá um valor de aproximadamente R$ 69 mil, totalizando R$ 24 milhões em todo o investimento. A previsão de entrega é de 175 unidades na primeira fase, presumida para setembro, e outras 175 na segunda fase, em novembro, de modo que famílias com crianças, idosos e pessoas que estão há menos de dois anos em situação de rua serão priorizadas.
O Programa Reencontro será dividido em três diferentes eixos. O primeiro, de conexão, em que o serviço público desenvolverá a criação de vínculos com a população em situação de rua; o segundo, de cuidado, visando acolhimento, inclusão produtiva e digital e disponibilidade de vagas de trabalho; e o terceiro eixo, de oportunidade, oferecendo a possibilidade de desenvolvimento e autonomia àqueles que estão nas ruas.
“Atualmente, entre 30% e 35% das pessoas em situação de rua estão aptas ao mercado de trabalho, entretanto, temos que preparar o mercado para recebê-las”, destaca Marivaldo da Silva Santos, agente de Saúde do CNR/Bompar, que também ressalta o déficit de moradia na cidade de São Paulo – o que inclui, além da população em situação de rua, os habitantes de cortiços, barracos e outros com condições precárias de saneamento e segurança.
O conselheiro fiscal da APM reforça que a classe médica precisa ser sensibilizada a respeito da gravidade do problema. “A classe médica, com toda a sua competência, viés de formação e história, tem muito a contribuir, não só intelectualmente, mas plena e praticamente também”, opina Fontão.
Papel da APM
“No primeiro semestre deste ano, o Professor Silvano Raia me procurou contando sua preocupação com as pessoas em situação de rua, e sugerindo que a APM se envolvesse diretamente com a questão. A partir daí, formamos um grupo de trabalho, que tem estudado o assunto, a fim de buscar formas de mitigar o problema grave que São Paulo e várias outras cidades enfrentam”, explica José Luiz Amaral.
Além de Raia e Amaral, compõem o grupo – que tem se reunido semanalmente desde o início de junho – Paulo Fontão, Gilberto Natalini, Jorge Curi, Luiz Garcez Leme e Vera Cardim (respectivamente 4º vice-presidente e diretora adjunta de Responsabilidade Social da APM), Arlindo Frederico Júnior, Marta Regina Marques, Ana Paula Cruz Almeida e Marivaldo da Silva Santos (os quatro do Consultório na Rua/Bompar) e o Padre Júlio Lancellotti, reconhecido por seu trabalho com a população em situação de rua.
De acordo com Raia, a classe médica tem um compromisso significativo com a sociedade. Sendo assim, diante do aumento no número de pessoas nas ruas, se faz mais do que necessário o desenvolvimento de ações que contribuam para a percepção do problema e a busca de medidas para solucioná-lo. Ele destaca a necessidade de ouvir a opinião de diversos conhecedores do tema, a fim de entender a dimensão da questão.
“Ao longo das discussões que já tivemos, nos parece ser necessário oferecer um conjunto de intervenções, adequado a cada pessoa. A moradia é o primeiro passo, sendo imprescindível selecionar os indivíduos para isso e monitorar sua evolução. Outro ponto importante é proporcionar trabalho e possibilidade de estudo, além das necessidades básicas como saúde, vestuário, transporte e alimentação. O trabalho perpassa ainda pela recuperação de laços familiares perdidos em função da situação de rua”, resume o presidente da APM.