Na noite da última quarta-feira, 21 de setembro, a Academia de Medicina de São Paulo promoveu um Encontro de Academias da Região Sudeste. Mediada por José Gomes do Amaral, presidente da AMSP e da Associação Paulista de Medicina (APM), a reunião on-line teve como tema “A Psiquiatria do passado, presente e futuro”, debatido por especialistas de renome da área.
Iniciando a sessão, Amaral agradeceu a participação de todos e salientou a importância do evento para aproximação e criação de vínculos entre as Academias da Medicina, bem como a discussão de uma relevante temática. “Este encontro é uma proposta da Federação Brasileira das Academias de Medicina (FBAM), que inicia um ciclo de reuniões com diferentes especialidades médicas. Decidimos iniciar com a Psiquiatria pois estamos vivendo um mês de conscientização sobre a saúde mental, sendo também um momento muito relevante para a Psiquiatria brasileira como um todo, por meio de sua evolução e constantes inovações.”
Representando a FBAM, Álvaro Antônio Melo Machado, vice-presidente da entidade, apontou que a temática é extremamente pertinente e de muita significância, tendo em vista os avanços na Psiquiatria contemporânea, progressos evidentes nas Neurociências e em pesquisas genéticas. “Temos uma frequente atração de jovens médicos interessados pela especialidade e, por outro lado, também notamos problemas assistenciais importantes, como o caso do setor público, que ainda não oferece uma resposta homogênea e estruturada às necessidades dos portadores de transtornos psiquiátricos, que recorrem ao SUS como sua única condição de atendimento.”
Passado da Psiquiatria
Responsável pela palestra inicial do encontro, Guido Arturo Palomba, psiquiatra forense e diretor Cultural da APM, enfatizou que desde os primórdios da especialidade, a loucura sempre existiu, explicando também que, no passado, doenças mentais eram vistas como possessões diabólicas.
“E como ninguém gosta de diabo por perto, doentes mentais embarcavam em navios, também conhecidos como naus dos loucos, que os levavam para lugares longínquos e lá ficavam à própria sorte. Isso ocorreu até Johann Weyer, ocultista e demonologista, fazer o extraordinário, comprovando que aquilo não era possessão demoníaca. Entretanto, o especialista não soube definir e explicar o que realmente causava aquela condição nos indivíduos”, pontuou Palomba.
Em meados do século XVII, pessoas com doenças mentais eram trancafiadas em casas de internação, pois muitos diziam que elas serviam para o trabalho, o que ocorreu até o final do século XVIII. “Existe um capítulo da história da Psiquiatria que nem sempre é de conhecimento de todos, algo que aconteceu em uma cidade pequena a noroeste de Bruxelas, cidade de Geel, também conhecida como a Vila dos Loucos. Lá, os indivíduos faziam novena para Santa Dimpna, a padroeira dos doentes mentais, que dominava a possessão demoníaca, pois a situação daquelas pessoas ainda não era vista como algo médico.”
O diretor da APM também destacou grandes nomes da Psiquiatria do passado, entre eles Philippe Pinel, que defendia a cura da loucura através do “tratamento moral”, baseado em uma ampla pedagogia com horários e rotina rigidamente estabelecidos, medicamentos receitados somente pelo médico e atividades de trabalho e lazer para o paciente.
“Na minha concepção, Pinel é mais importante que Napoleão. Apesar de ser um grande guerreiro, há quem também travava grandes guerras, sendo tão bons quanto Napoleão. O que Pinel fez foi desacorrentar todos aqueles doentes mentais, os libertando e trazendo dignidade, provando e explanando que toda aquela situação era um problema médico. Doentes que antes viviam com prostitutas e criminosos, começaram a ser vistos como importantes pacientes”, explicou o palestrante.
Depois de Pinel, iniciou-se o grande caminho do apogeu da Psiquiatria e, com ele, nasceram também as grandes doutrinas: “O grande problema é que o mundo nos últimos 50 anos se modificou, com certeza não é mais o mesmo, é um lugar completamente diferente. Com a chegada dos aparelhos eletroeletrônicos, o homem foi à lua, os meios de comunicação mudaram completamente e, assim, também ocorreu a síntese química e a entrada dos psicofármacos na Psiquiatria”.
Segundo o especialista, no final da década de 1990, houve uma grande transformação na área, a psicopatologia foi sendo deixada de lado e o uso de fármacos começou a ser introduzido no tratamento de doentes mentais. “Chegamos ao século XXI, que seria justamente o domínio completo das farmacêuticas, sendo também, em minha concepção, a grande epidemia dos remédios. De fato, é algo epidêmico.”
De acordo com pesquisas divulgadas pela Organização Mundial da Saúde, a compra do fármaco Zolpidem (hipnótico) cresceu mais de 60% no ano de 2020; já em relação aos psicoativos, as vendas de Clonazepam e Rivotril ficaram em segundo lugar no Brasil, perdendo apenas para os anticoncepcionais. “Esta é a Psiquiatria dos dias atuais, eu termino dizendo que existem núcleos de reação a esta decadência da Psiquiatria contemporânea, grande e presente no mundo todo. É preciso uma reeducação de psiquiatras, para que atuem como psicólogos e entendam que a comunicação é o melhor caminho,” concluiu.
Presente
A segunda palestra da noite ficou por conta de Humberto Correa da Silva Filho, psiquiatra e especialista em Fisiologia e Farmacologia, que apresentou as principais vertentes da Psiquiatria atual. “Esta condição mental sempre existiu, temos relatos sobre situações e episódios de crises mentais relatadas há muitas décadas. Costumo dizer que quando o Homo sapiens começou a desenvolver sua capacidade de consequência por seus atos, o que se tornou um dos primeiros sintomas do que chamamos de doença mental e desejo de morte.”
Voltando ao passado, o especialista relembrou importantes revoluções na área, trazendo destaque para as que foram lideradas por Jean-Étienne Esquirol, que dizia que o suicídio é um fenômeno muito frequente, e que doenças mentais precisavam ser tratadas não sob o aspecto legal e religioso, mas sim baseado na Ciência, sendo necessário entender suas principais causas e formas de prevenção.
Já a segunda relatada foi a de Freud, grande nome da psicanálise e idealismo, que defendia a tentativa de compreender o comportamento humano através da psique. “Se Pinel havia libertado os loucos, a Ciência ainda não sabia como tratá-los, e isso começou a mudar com a presença de grandes nomes da especialidade, que usavam coquetéis de remédios feitos para acalmar os pacientes. Com o uso dessas combinações, foi possível observar algo interessante: os que recebiam pareciam que não se incomodavam tanto com a dor.”
Silva Filho ressaltou que, anteriormente, estudos mostravam interferências enormes em diagnósticos feitos por diferentes especialistas, surgindo a partir desta situação a ação de uniformizar a especialidade, trazendo prós e contras com o tratamento realizado com o uso de remédios. Segundo ele, até recentemente não havia métodos específicos para o cuidado de doenças mentais. “Um tratamento muito usado no século XX foi a famosa insulinoterapia, o que resultou em episódios de crises convulsivas, de glicose e choque. O objetivo era controlar a agressividade e a ansiedade dos pacientes.”
“Hoje, temos drogas que efetivamente tratam doenças mentais. É nítido o abuso por parte dos pacientes, mas muitos desses remédios podem auxiliar no tratamento de ansiedade e depressão e, daqui a 100 anos, quando psiquiatras olharem o que se usa hoje para tratar nossos pacientes, terão a mesma reação que temos quando estudamos os tratamentos do passado. É a evolução dos tempos, e isso permite maior conhecimento de nosso cérebro em relação a questões mentais” explicou.
De acordo com o palestrante, a percepção do público sobre doença mental e Psiquiatria vem mudando para melhor nos últimos dois séculos, e isso se acentuou a partir das décadas recentes. “A Psiquiatria tem seu lugar de direito na casa da Medicina. Somente alguns desenvolvimentos mudaram fundamentalmente a Psiquiatria através da nossa história, não existe o mesmo estigma e preconceito do passado. Tivemos algumas revoluções que mudaram muita a especialidade e a meta é continuar evoluindo.”
Perspectivas futuras
Em continuidade às apresentações, o psicanalista Ronaldo Victer foi o especialista convidado para abordar as possíveis vertentes em relação ao futuro e evolução da Psiquiatria. Em sua abordagem, argumentou que a prática no passado era dada a asilos e hospícios, algo segregado e fora do contexto de uma Medicina muito mais ampla. Pontuou, ainda, que os que estudavam Psiquiatria eram considerados alienistas.
“A Psiquiatria de antes com certeza não é a mesma de hoje. Antigamente, era uma prática que não tinha uma característica própria. Isso ocorreu porque a especialidade utilizava recursos de outras doenças para poder se firmar, à medida em que o assunto mental não era bem estabelecido”, introduziu o palestrante.
Para Victer, a Ciência em torno da Psiquiatria não se fazia tão clara, exatamente porque a especialidade envolvia ligações externas que se baseavam na mente humana, o que está ligado ao aspecto básico de cada indivíduo. Desta forma, a Ciência busca comprovar pensamentos psiquiátricos, que se subdividiam até então. “O paciente era um aspecto oriundo de um pensamento terrível ou definido como algo diabólico, pois a própria sociedade da época não conseguia entender a Psiquiatria e seus pacientes. O isolamento fazia parte do encarceramento desses indivíduos, o que até pouco tempo atrás, na segunda guerra mundial, ainda existia.”
Segundo o especialista, o tratamento da época estava embasado a partir do entendimento de causas corporais, com as quais seria possível entender a doença mental. Todas essas distorções de conhecimentos compreendiam a estrutura mental. A Medicina é totalmente ligada às ciências naturais, e não pode ser diferente, pois estão ligadas ao desenvolvimento e conhecimento. É necessário que seja conhecida não só a causa da doença, mas também sua evolução e fim.
“O pensamento psiquiátrico começou a se modificar a partir do final da segunda guerra mundial. E mudou porque os médicos começaram a ter mais conhecimento sobre o assunto e aspectos psíquicos que envolvem o mundo social, o que requisitava um conhecimento da especialidade de um jeito mais esclarecedor. A partir deste tempo, iniciou-se uma mudança radical na Psiquiatria”, frisou Victer.
Evidenciando a situação presente da especialidade, ele reforçou a ideia de que a psicofarmacologia foi, de fato, uma grande mudança para a especialidade. Contudo, a técnica ainda não é capaz de entender a essência mental no lado afetivo, pois é algo impossível, pois a prática está presente somente no campo da ansiedade e tristeza, ou no campo do entorpecimento e excitação. “Desta forma, a psicofarmacologia não consegue sair desta regra, pois está dentro das ciências da natureza. O embate é que a Psiquiatria não lida somente com isso, trata também da relação e contato com o outro, o que entra no campo afetivo.”
Com o tempo, a especialidade passou a ter uma penetração enorme nas áreas acadêmicas, estando presente também em grade de disciplinas, o que antes não acontecia. Antigamente, era considerado algo físico ou do campo primitivo e, de toda forma, não era algo científico. “A Psiquiatria presente está baseada fundamentalmente na sua capacidade empática e de entender todo os conhecimentos e, até aqui, as ciências trouxeram sua ligação com o próximo. Em uma das minhas abstrações da Psiquiatria do futuro, a partir dos indícios que temos hoje, acredito que os avanços irão fortalecer cada vez mais a subjetividade afetiva e a intersubjetividade, o que já faz parte do hoje, mas passará a ser cada vez mais incluída” finalizou.
Percepções
Ao final das apresentações iniciais, os comentários e percepções do conteúdo ficaram por conta de Valentim Gentil Filho, psiquiatra e especialista no tratamento dos transtornos ansiosos e do humor – que explicou o fato de ser um pessimista em relação à Psiquiatria do futuro. “Na década de 1970, uma grande dificuldade que tínhamos era que a Psiquiatria brasileira ainda estava dentro dos maus manicômios. Vi um pouco da Psiquiatria do passado e não gostei. Uma das coisas que precisava ressaltar é que existiam bons conceitos da Psiquiatria europeia, mas as traduções eram péssimas, os livros não transmitiam o que os grandes autores do passado realmente queriam dizer, o que acredito que tenha desestimulado a minha geração”, complementou.
Citando o livro La Angústia Vital, escrito pela psiquiatra Juan José López Ibor, que apresenta a defesa de que a angústia de que Freud falava era, na verdade, algo parecido com o lado vital da psicose maníaco depressiva, e que traz o conceito de angústia vital como algo mais simples, relacionado com terrores noturnos, os quais eram baseados e definidos por médicos do passado como ataques de pânico espontâneos recorrentes durante a noite.
“Este passado implica um pouco no presente, sendo uma mistura de presente e da presença de jovens pioneiros na especialidade. Vivi a reforma psiquiátrica, é uma questão política onde há uma confusão ideológica ente profissionais entre as pessoas que achavam que sabiam o que era a doença mental e o que podiam fazer para ajudar aquelas pessoas. Durante alguns anos, estive preocupado em enfrentar este ataque antipsiquiátrico, que era chamado de luta antimanicomial, porque sempre fui a favor de bons hospitais psiquiátricos”, enfatizou Gentil.
Ele pontuou, ainda, que a transformação da psiquiatria aconteceu com a criação das unidades psiquiátricas nos hospitais gerais e, em alguns lugares do mundo, isso foi possível com a modernização dos manicômios, principalmente em países como a Inglaterra, Estados Unidos e França. “O que me preocupa na psiquiatria hoje, talvez seja que as pessoas falem do passado como se soubessem o que os grandes autores quiseram dizer, e acredito que além de pessoas fluentes em outros idiomas, poucos de nós tivemos a oportunidade de aprender de fato os conceitos fundamentais da prática.”
“Vejo que hoje, na indústria farmacêutica, não temos nada em relação à prática da psiquiatria que valha a pena citar nos últimos dez anos. Temos mais de quarenta tipos de antidepressivos e nenhum deles é melhor do que o primeiro criado. Quando penso no futuro, infelizmente não vejo uma programação atual suficientemente adequada para poder lidar com doentes mentais”, completou.
De acordo com o psiquiatra, um grande avanço seria se boa parte dos clínicos gerais pudessem prescrever antidepressivo, porque, diante dos dados que apontam que 20% da população em determinado momento pode ter um quadro depressivo, não haverá psiquiatras no mundo suficientes para atendê-los, sendo necessário que médicos generalistas possam executar o diagnóstico e o tratamento destes casos.
“Uma das minhas preocupações é com a pseudopsiquiatria do futuro, a outra é com quais bases devemos formar médicos para atender a demanda da população com quadros significativos e que não podem ser atendidos pelos clínicos gerais nas Unidades Básicas de Saúde. Fico me questionando, vamos ensinar nossos residentes à pseudociência? Vamos jogar fora o conhecimento sólido que nós temos? Como iremos formá-los? Desta maneira, respondo que precisamos mudar o conceito na formação médica de que algumas vertentes da psiquiatria devem ser consideradas nas grandes áreas da medicina”, finalizou.
Finalizando o encontro, o vice-presidente da FBAM salientou o quanto as apresentações foram importantes para se observar a história e a importância da medicina brasileira referente aos estudos e tratamento dos transtornos. “Sob vários prismas, o evento de hoje produzirá frutos, e esta é uma das vertentes impostas pela FBAM, que além de congregar as academias de Medicina dos estados, visa promover atividades culturais e científicas, que se relacionem diretamente com a preservação dos valores da ética, bioética e humanismo, e isso hoje foi de uma relevância e presença extrema em todas as apresentações.”
Fotos: Marina Bustos