A Covid-19 trouxe enormes desafios, com distintas manifestações de sofrimento psíquico, em decorrência dos efeitos da ampla crise sanitária, social, política e econômica. Por conta disso, o Programa Compromisso com a Qualidade Hospitalar (CQH) – mantido pela Associação Paulista de Medicina – promoveu, na última quinta-feira (9), um webinar com os hospitais participantes para debater o tema e seus efeitos no ambiente de trabalho.
O evento – do Grupo de Benchmarking Pessoas do CQH, que é coordenado por Maria Aparecida Novaes – foi moderado por Cristina Rossi, especialista em Saúde Pública, Saúde da Família e Gestão Pública em Saúde, e teve como palestrantes Rosângela Elias, coordenadora do Programa de Saúde Mental na Secretaria de Estado da Saúde, e Lélio Tocchio, gerente de Gestão de Pessoas do Hospital Santa Catarina.
Iniciando as apresentações, Rosângela Elias trouxe dados da Organização Mundial da Saúde que apontam o Brasil como campeão mundial de casos de transtorno de ansiedade, com 18 milhões de pessoas afetadas. Em segundo lugar estão os transtornos depressivos, com 12 milhões de casos. “Na pandemia, essa situação se agravou. É urgente que a gente discuta a saúde mental. No entanto, o assunto sempre vem acompanhado de muito preconceito. Muitos já pensam em pessoas que tomam medicamentos tarja preta ou desqualificam os transtornos relativamente leves, como depressão ou crise de ansiedade. Como trazer o assunto para o espaço corporativo? Como falar para o chefe que estou com depressão sendo que para a grande maioria da população depressão é fazer corpo mole?”.
Isolamento, ansiedade, enlutados e lutos dos outros são algumas manifestações psicossociais trazidas com a Covid-19 que tiraram pessoas de seus supostos espaços de tranquilidade, sossego e segurança para uma rotina nova e incerta que ameaça de certa forma a vida. “Tudo isso foi agravado no nosso País por conta das desigualdades. Por exemplo, como manter isolamento seguro em comunidades com espaços pequenos divididos para 10 pessoas e com poucas condições de higiene? A própria condição de vulnerabilidade colocou muitas crianças e mulheres em risco, aumentando o contato com agressores e potencializando violência doméstica. A polarização política, a intolerância e manifestações racista, misógina e raivosa, a violência de forma geral aumentou”, acrescenta a especialista.
Todo esse processo, segundo ela, escancarou a fragilidade social do País. Nesse sentido, as demandas de saúde mental se agravaram praticamente junto com a situação da pandemia, com tendência de se manter ao longo do tempo.
Ambiente profissional
Como olhar para os colaboradores diante do cenário atual? Como manter os compromissos, entregas e resultados esperados? Afinal, as equipes também fazem parte do conjunto social. “Isso também é uma mudança de paradigma no mundo do trabalho. À medida em que estamos caminhando para o olhar corporativo, não há possibilidade de cindir a vida pessoal. A pandemia de alguma forma trouxe essa reflexão: para entregar o serviço que querem, aquela pessoa precisou renunciar a quê? A família? Ela mesma? Todo mundo vivenciou isso um pouquinho, da chefia aos funcionários”, esclarece Rosângela Elias.
Entretanto, as demandas de saúde mental já ocupavam as agendas dos gestores. “Havia muitas tentativas de suicídio de colaboradores, muitos afastamentos por uso de substâncias, de depressão etc.”, informa a palestrante.
Com a pandemia, foram desenvolvidas ações pontuais com profissionais de Saúde: duplo desafio do cuidar necessitando ser cuidado, ou seja, os funcionários não podem sair da linha de frente porque a população depende de cuidado, mas também os cuidadores precisam de cuidado; organização de rede de apoio; estratégias locais levando em consideração o contexto local; promoção de saúde mental; propostas de apoio psicossocial para as instituições de saúde; e apoio institucional (trabalho desenvolvido com gestores para implantação de ações de cuidados em saúde mental).
O cuidado em saúde mental envolve escuta e acolhimento; falar sobre saúde mental para diminuição do preconceito e ampliação das possibilidades de ações; promoção de ambientes mais saudáveis e comunicativos; importância de convivência para a saúde mental e papel como gestor cidadão e funcionário. “Precisamos inovar, olhar para o futuro e construir processos de trabalho que busquem resultados e respeitem os indivíduos. Os serviços necessitam avançar, o mundo do trabalho está mudando, precisamos investir em estratégias inovadoras frente aos novos desafios, valorizar o indivíduo e o coletivo.”
Assim, o Programa Autoestima, desenvolvido pela Secretaria de Estado da Saúde, é uma plataforma que oferece aos profissionais conteúdo relevante sobre a saúde mental. A iniciativa traz as abordagens: o sofrimento nas instituições de saúde – modos de cuidar; escuta oportuna como cuidado em saúde mental na situação de pandemia; Covid-19 e os primeiros cuidados psicológicos; consultas terapêuticas e psicoterapia breve na pandemia; somatização – teoria e prática; o luto – reflexões e enfrentamentos em período de pandemia; o trabalho com grupos on-line – tratamento e promoção em saúde; e violência intrafamiliar contra crianças, adolescentes, gênero e idosos.
Experiência na Rede Santa Catarina
Em seguida, Lélio Tocchio mostrou o trabalho desenvolvido de atenção aos profissionais da Saúde na instituição filantrópica. “Estamos passando por um momento bastante difícil e precisamos dar atenção às pessoas. Serviços é uma área bastante difícil, não muito valorizada. Costumo dizer que todos exigem dedicação dos funcionários, mas muitos os tratam e pagam mal. Quando comecei na Rede Santa Catarina, pensei no cuidado não só do paciente, mas do familiar emocionalmente abalado. Temos uma cultura bastante acolhedora. Vimos ainda que os nossos profissionais trabalham muito com o coração, se envolvem muito com a dor do outro”, relata.
E reiterou: “Toda instituição é cópia da sociedade, a população é a mesma, ninguém vem para o hospital e deixa os problemas em casa, suas angústias e anseios. Tudo é igual, a bolsa vem junto. E como lidamos com tudo isso? Como as pessoas com todos os problemas conseguem lidar com quem está doente precisando de ajuda?”.
Ele apresentou a estruturação de serviço e cuidado iniciado há três anos na Rede Santa Catarina, acelerado em virtude da pandemia. Ainda com implementações devido à sua complexidade, a iniciativa aposta em um serviço diversificado com foco na missão institucional de acolher e cuidar do ser humano durante todo o ciclo da vida. “Se queremos resultado para a nossa organização, temos que acolher e cuidar do trabalhador como pessoa, de maneira integral. É preciso ajudá-lo a tratar os seus problemas, e não somente os sintomas. É preciso tratar os problemas que os afetam e que são de nossa responsabilidade”, disse Tocchio.
Na Rede Santa Catarina, a equipe de cuidado centrado no trabalhador é composta de assistente social, médicos, enfermeiros e técnicos e psicólogos, trabalhando em conjunto, com ações integradas. A equipe trabalha para entender de maneira sistêmica os problemas interrelacionados que impactam a saúde do trabalhador; pesquisam e entendem o que é importante para ele; tomam decisões que sejam coordenadas sobre o cuidado e tratamento; identificam e atingem os objetivos; acompanham a melhora da situação e definem novas ações necessárias.
“A base de tudo é acolhimento por parte da equipe (ouvir com empatia, não julgar, ajudar, promover confiança), tratando o trabalhador com respeito, compaixão e dignidade, prestar o cuidado ‘com ele’ e não ‘para ele’”, informa o especialista.
Para tanto, o time considera que a promoção do cuidado e o tratamento devem somar pontos de vista e opiniões de todos os membros, além de adaptar o cuidado às necessidades e interesses do trabalhador e desenvolver conhecimento e confiança por parte dele, para que decida sobre a sua saúde de forma efetiva e tenha uma vida independente e plena.
“O cuidar da saúde mental vai além da terapia. É preciso perceber quando o empregado não está bem e direcioná-lo para ajuda, avaliar a carga de trabalho diária e seu nível de estresse, as relações com a equipe, o sistema de gestão do seu líder e entender as questões individuais e os familiares que estão levando a tal estado”, acrescenta o gerente de Pessoas. São as frentes de atuação da iniciativa: psicoeducação, busca ativa, psicoterapia breve e integração e coordenação do cuidado.
Há 120 anos no Brasil, a Rede Santa Catarina possui 10.800 funcionários. É composta por nove hospitais em São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina, sendo sete filantrópicos, quatro colégios de ensino básico, um colégio técnico, duas creches, uma obra social, um lar de acolhimento de idosos e um Centro de Referência do Idoso.
Imagens: Reprodução Webinar CQH