Formação médica em risco

Aprovação do Decreto nº 11.999/24 representa um novo embate para a Comissão Nacional de Residência Médica, médicos e pacientes de todo o Brasil

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A quinta-feira de 18 de abril parecia ser mais um dia normal até a divulgação da notícia sobre a aprovação do Decreto nº 11.999/24. Assinada pelo presidente da República em exercício, Geraldo Alckmin, a determinação altera de forma drástica a atual composição da Comissão Nacional de Residência Médica, já que, agora, contará com mais representantes do Governo Federal, fazendo com que entidades médicas percam força na tomada de decisões. Ela também compromete a qualidade da formação dos residentes e, consequentemente, o atendimento à população.

O Decreto chocou a classe médica, que em nenhum momento foi consultada ou avisada sobre as alterações. A CNRM, que até então era uma organização que possuía constituição paritária entre entidades médicas e representantes do governo, passa, então, a contar com mudanças substanciais, já que se abrirão novas vagas de Residência para atender egressos de escolas que não fornecem um ensino adequado.

O Programa de Residência Médica é fundamental para complementar o ensino dos médicos, já que desenvolvem capacidades técnicas e científicas adquiridas apenas por meio dele, contribuindo para torná-los profissionais hábeis, com o preparo necessário para lidar com as incumbências da especialidade escolhida e sendo responsáveis por um atendimento digno e assertivo aos pacientes. Neste sentido, a CNRM, desenvolvida pelo Ministério da Educação (MEC), é peça chave na fiscalização dos programas de Residência vigentes no Brasil, garantindo que estes sejam efetivos.

O presidente da Associação Paulista de Medicina, Antonio José Gonçalves, descreve de que forma o Decreto traz grandes prejuízos. “Isso vai criar um desequilíbrio nas votações. É muito ruim para a formação do médico, visto que nesses anos todos, a Comissão Nacional de Residência Médica sempre teve critérios muito bem estabelecidos na abertura de novas vagas.”

Segundo o médico, a classe vem tentando manter a paridade da Comissão e a qualidade na concessão do título de especialista pela Residência. “Uma outra preocupação é porque o Decreto, talvez, seja responsável por levar ao fim das sociedades de especialidades. Uma das funções mais importantes das sociedades é conceder o título de especialista, algo que é feito com muita seriedade – o índice de reprovação, para se ter uma ideia, varia entre 30% e 60%. Me arrisco a dizer que o título concedido pela Associação Médica Brasileira e as especialidades é a melhor prova da qualidade do médico, se ele tem um título de especialista, é um profissional em que o paciente pode confiar e que será tratado com as melhores evidências que existem hoje na Ciência. Não podemos perder isso.”

A Associação Médica Brasileira também compartilha a preocupação a respeito da perda na paridade dos membros representativos de entidades médicas em relação aos membros do governo. O presidente da AMB, César Eduardo Fernandes, relembra que, antes, havia o mesmo número de membros entre cada um dos grupos que constituem a CNRM, enquanto, agora, oito passarão a ser do Governo Federal, enquanto apenas cinco serão de entidades médicas.

“Neste contexto, as decisões sempre serão aquelas que interessam apenas ao governo, sem ouvir a sociedade organizada, aqui representada na Comissão pelas entidades médicas. Existe também a criação de uma câmara recursal e ela, por si só, é algo muito estranho, porque vai anular as decisões do colegiado. Não bastasse isso, será composta por membros exclusivos do Governo Federal, ou seja, eles terão três votos, fazendo com que qualquer decisão que venha a ser desconfortável, possa ser anulada pela câmara recursal”, explica.

César Fernandes reforça, ainda, que os médicos acreditam que devem ser mantidas as competências do secretário executivo, que, além de direito a voto, também era escolhido entre pessoas de notório saber no processo da Residência Médica – sempre médicos, com vasta experiência no programa e que possuíam respeito de todos os pares.

“Isso foi substituído no Decreto atual por um representante que fará pautas e tocará o cotidiano das ações da CNRM de acordo com o seu próprio entendimento. O Decreto pretende flexibilizar a Residência Médica, correndo o risco de atenuar a qualidade da formação do residente e isso não nos interessa. O que queremos é fazer um residente bem formado para bem atender a população e nós duvidamos que essas mudanças venham em prol da melhor formação do residente.”

Implicações
Até a divulgação do novo parecer, a Comissão Nacional de Residência Médica era regida por um Decreto de 2011, que esclarecia quais eram as exigências, regulações e procedimentos necessários para o ato autorizativo de um programa de Residência Médica. Todavia, isso passa a ser fragilizado com as novas normas.

Fernando Tallo, diretor de Eventos da Associação Paulista de Medicina, 2º tesoureiro da Associação Médica Brasileira e um dos membros da CNRM, aponta de que forma isso acontecerá. “Foi suprimido todo o capítulo de procedimentos para iniciar um programa de Residência Médica. Isso enfraquece as exigências necessárias para constituir um programa de formação de um médico especialista.”

Ele também relata as principais disparidades trazidas pelo Decreto nº 11.999/24. “As câmaras técnicas, responsáveis por instruir os processos da Residência Médica, ficarão debilitadas porque estarão aparelhadas com integrantes do governo. Isso cria uma discrepância muito grande na Comissão, com o aumento da participação de integrantes do governo, tornando-a mais política e menos técnica.”

Para Tallo, a discussão não está focando no que deveria ser, de fato, o ponto central da tomada de decisões. “O discurso que fazem hoje é que faltam vagas de Residência Médica, mas quando vamos para os dados reais, o Brasil tem 70.047 vagas autorizadas e, destas, temos ocupadas 46.610. Ou seja, há 24 mil vagas ociosas. Tínhamos que estar discutindo o motivo por estarem ociosas e como devemos ocupá-las. Acho que esse Decreto é uma tragédia para o residente brasileiro e que o mesmo destino que deram para a graduação, darão para a Residência Médica”.

Atuação
Caso não seja revogado após os 90 primeiros dias desde a sua aprovação, o Decreto nº 11.999/24 virará lei. Para impedir isso, a Associação Paulista de Medicina, em parceria com a Associação Médica Brasileira, vem trabalhando em uma série de medidas para sustar mais este aborrecimento para a classe médica.

Dentre elas, foi realizada uma reunião da APM com a adesão de diversas sociedades de especialidades. Deste encontro, surgiu a Carta de São Paulo, expondo descontentamentos e contrariedades dos médicos em relação ao Decreto e contando com o apoio de mais de 35 sociedades paulistas. A Carta foi enviada aos parlamentares em maio.

“Soltamos esse documento para esclarecer sobre o mal que isso pode fazer, não só à formação e à qualidade do médico brasileiro, mas, obviamente, também à nossa população. Esta vem sendo uma das atitudes que a APM tomou para mostrar claramente a sua posição contrária ao que vem acontecendo e pedir a revogação do Decreto”, explica Antonio Gonçalves.

Não obstante, o presidente esteve representando a APM em uma audiência pública com o senador Marcos Pontes (PL – SP), ao lado de demais entidades médicas, a fim de esclarecer ao Senado Federal sobre os malefícios do Decreto e de todos os desdobramentos que a formação médica vem enfrentando.

Os médicos também estão contando com o apoio do senador Hiran Gonçalves (Progressistas – RR), que está protocolando dois Projetos de Decreto Legislativo (PDLs) contra os efeitos adversos do Decreto nº 11.999/2024 ao lado do deputado Doutor Luizinho (Progressistas – RJ), que vem fornecendo grande suporte às apreensões dos médicos – no fim de abril, Luizinho recebeu o presidente e membros da Diretoria da AMB em seu gabinete para uma reunião que discutiu as diversas repercussões do Decreto.

“O Decreto fez com que, mesmo com as eventuais divergências que podem haver entre as entidades médicas, que é natural que assim seja, o contraditório faz parte das nossas vidas, nós nos mantivéssemos plenamente unidos. A partir dele, as entidades se alinharam e estamos bastante dispostos a fazer ver aos governantes, ao Ministério da Educação, da Saúde e à Presidência da República, de que há um equívoco nas mudanças propostas e estamos completamente dispostos a interagir com o parlamento para que o Decreto não prospere”, reforça César.

Até o fechamento desta edição da Revista da APM, os médicos se guiram manifestando a sua preocupação e realizando diferentes ações em busca do melhor exercício da Medicina. Segundo Antonio Gonçalves, a classe não descarta a possibilidade de fazer uma caravana a Brasília, no intuito de pressionar os parlamentares acerca do tema em questão.

“Isso vai demandar uma grande organização nossa e seria melhor se pudéssemos resolver sem precisar fazer isso. Porém, temos pressa e, pelo que estamos vendo, o Governo tem pressa também, porque os trâmites do Senado e da Câmara não estão sendo lentos, estão trabalhando muito com isso lá dentro e nós temos que mostrar a nossa força”, complementa o presidente da APM.