A Associação Paulista de Medicina promoveu, na noite da última sexta-feira (23), mais uma edição do seu tradicional cine debate. Na ocasião, o filme escolhido para discussão foi ‘As Bicicletas de Belleville’, abordando como tema de reflexão ‘Atitude muda uma vida’.
Moderado por Wimer Bottura, psiquiatra, psicoterapeuta e coordenador do Cine Debate desde 1997, os especialistas convidados para debater a obra foram Hermano Tavares, psiquiatra, fundador e coordenador do Programa Ambulatorial do Jogo Patológico (PRO-AMJO), e Iara Mastine, psicóloga e especialista em Neuropsicologia. “A obra em questão foi sugerida por uma debatedora que participa frequentemente das sessões. Achei interessante trazer esta abordagem, já que não costumamos debater animações habitualmente”, explicou Bottura.
O longa apresenta a vida de Champion, um jovem que só se sente feliz quando está andando em sua bicicleta. Percebendo a vocação do garoto, sua avó (Madame Souza) começa a incentivar seu treinamento e encorajá-lo a participar da famosa Volta da França, principal competição ciclística da País, no intuito de torná-lo um verdadeiro campeão. Entretanto, durante o percurso da corrida, Champion é sequestrado e, a partir deste momento, sua avó e seu cachorro (Bruno) partem em sua busca, indo parar em uma megalópole localizada além do oceano, chamada Belleville.
Críticas
Iniciando o debate, Tavares comentou sobre algumas das críticas presentes no longa, destacando também que o filme é uma espécie de caricatura, na qual personagens são apresentados com traços exagerados, se mostrando também bastante poético, agridoce e, às vezes, soturno, uma verdadeira representação de peça francesa.
“Desta forma, é interessante resgatar este filme quase 20 anos depois de seu lançamento, pois o domínio de modelo audiovisual americano tornou-se quase hegemônico. No longa, não vemos uma animação estilo Disney ou Pixar, este filme, em quase todas as vertentes, se dá como uma comunicação visual, com o som presente apenas como trilha”, complementou o palestrante.
O psiquiatra ressaltou que a obra resgata aspectos facilmente encontrados em Jacques Tati, ator e comediante considerado o mestre da comédia francesa. “Acredito que seja importante reconhecer que, para o bem ou para o mal, ninguém é livre da sua perspectiva cultural herdada. Acredito que existe um certo rancor da França de não ser mais a referência cultural do mundo, ainda é uma referência inegável, mas não é mais a dominante.”
De acordo com o especialista, as pessoas estadunidenses retratadas no longa são figuras opulentas e extremamente obesas e, a partir deste ponto, a crítica leva em consideração a cultura de massa e a produção industrializada e comercializada presente no entretenimento. Sendo o ciclismo considerado um ícone cultural da França, o filme o transforma em algo de uma exploração absurda.
“Os ciclistas apresentados também não eram pessoas normais, todos tinham cara de cavalo, corpo magro e pernas tão grossas que mal conseguiam andar. A caricatura e a crítica vão crescendo em sua ideia de que a comercialização progressiva do entretenimento não tem respeito por nada, pelo contrário, apenas transforma o corpo das pessoas, o que é uma crítica duríssima para a época”, salientou Tavares.
Outra crítica presente no filme em relação à França é uma certa paixão e idealização do rural, do simples e enorme medo de que o progresso venha engolir tudo o que foi conquistado. “Isso fica claro quando a casa de um dos personagens do filme é engolida pela civilização e substituída por uma linha férrea. Algo interessante é que o personagem Bruno, considerado o alívio cômico, sonha com o barulho causado pelos trens que ali passam, trazendo uma sensação de onipresença. De certa forma, acredito que esta relação que o personagem tem com o trem é o que temos hoje com a tecnologia, que vai nos invadindo e tirando a poesia de nossas vidas.”
O debatedor ressaltou ainda que uma das curiosidades observadas no filme é a nacionalidade de Madame Souza, que é de descendência portuguesa. Segundo ele, o português na França é uma figura completamente diferente, sendo considerado até mesmo outra persona. “Em uma analogia, podemos dizer que é a figura do nordestino em São Paulo, visto normalmente em duas perspectivas diferentes, em uma visão mais agressiva e preconceituosa de que o nordestino é bruto e ignorante e, por outro lado, também a visão de uma figura forte e resistente a todas as adversidades.”
Tavares também disse acreditar que a ideia da Madame Souza vem daí, uma portuguesa forte, símbolo de obstinação e persistência, o que a torna uma super-heroína. “Talvez isso seja uma proposta embutida na afirmação de que uma atitude muda uma vida, pois ela nunca desistiu de seu neto, exceto no momento de sua morte. Apesar de ser capaz de qualquer coisa, Madame Souza não foi capaz evitar a morte”, acrescentou.
Finalizando, o especialista pontuou que achou a conclusão do longa agridoce, em que Champion já velho e possivelmente mais amaciado pela vida – e já não tão amargurado – está sentado diante da televisão, assim como fazia com a avó: “Neste momento, uma voz o questiona ‘Já acabou?’ e ele reconhece a voz da avó e responde ‘Sim, já acabou’, sendo a única fala do filme, o que torna o fechamento poético”.
Parentalidade
Iara Mastine, por sua vez, comentou que não conhecia o filme, e que logo de início sua percepção se voltou para a parentalidade, pois é algo que está relacionado com seu cotidiano como psicóloga infanto-juvenil, e por também presenciar frequentemente momentos em que pacientes têm ações parecidas com a de Madame Souza e Champion.
“É um filme cheio de expressões e momentos em que podemos fazer indagações e interpretações de acordo com nossa vivência e valores. Notamos uma história passada em uma casa muito simples, no meio do campo. Era possível perceber que quase não havia interação entre Champion e amigos, sendo uma perspectiva de uma criança muito isolada, que vivia com a avó, que fazia tudo para vê-lo feliz”, comentou a palestrante.
A psicóloga comenta que o neto facilmente ganhava da avó algo para se sentir melhor, sendo presenteado com animais de estimação e instrumentos musicais e, mesmo tentando com todos os recursos possíveis, ela não conseguia animá-lo, o que causava frustração, pois sentia a necessidade e obrigação de fazê-lo feliz.
“Tenho hoje alguns pacientes que são cuidados pelas avós, e se torna nítida a vontade de ir além. Muitas vezes, vi a Madame Souza como muitas avós que conheço e até mesmo com discernimento importante, porque nossa vivência vai mudando e vamos criando novas visões. Ela sempre pensava no que era importante para o neto e, ao mesmo tempo, também gostava das novas atividades que fazia para garantir sua felicidade”, salientou.
De acordo com a especialista, Champion se tornou uma criança, adolescente e jovem sem nenhuma comunicação com sua parente mais próxima, e que tinha uma certa deficiência em colocar suas necessidades para fora. Assim, a avó precisava ficar sempre olhando, observando e se adaptando da maneira que podia para fazer de tudo para que ele se sentisse bem.
“Quando ela percebe uma paixão por parte dele pela bicicleta, a abraça tão forte que começa a viver em função disso, participa dos treinos e o ajuda a evoluir. Em sua única chance de mostrar que estava pronto para enfrentar o Tour de France, é infelizmente sequestrado junto com outros dois ciclistas. A avó percebe e, por ter passado muito tempo dedicado a ele e ao seu esporte, felizmente o reencontra.”
Iara conclui dizendo que, no filme, a paixão do neto se tornou a paixão da avó, que começou a estudar sobre o tema, criou seu próprio dinamismo e foi atrás de executar o melhor treinamento possível para o neto. “Por parte de Madame Souza, também foi perceptível a aceitação pela paixão de Champion, um valor muito importante, que faz parte da intenção de uma figura parental, empatia e a questão de ser fiel. A proximidade de ambos faz com que ela tenha sucesso em sua busca por ele e, caso não fosse tão próxima do neto, certamente o teria perdido para os sequestradores.”
Debate
Ao final das apresentações iniciais, Bottura fez suas considerações sobre o longa e apresentação dos especialistas. “Como já foi falado anteriormente, o filme é satírico e explora a estereotipia das culturas, principalmente francesa e americana, e ainda passa a mensagem de como o capitalismo predador devora as pessoas e tudo o que está na sua frente. A obra realmente demonstra e mostra com clareza a questão do predatismo da sociedade.”
Além do predatismo, o moderador pontuou que também foi possível observar a determinação daquela avó de uma criança que é triste porque não tem parentes próximos e nem homens bons à sua volta, o que é muito comum no cinema e na vida real. “É uma criança triste, que não se comunica e que sofre internamente. O filme valoriza o esforço daquela avó em manter o neto feliz e o que reflete no tema que nos trouxe a essa sessão.”
Respondendo sobre a interpretação da cena inicial – em que uma bailarina negra está dançando com uma saia rodeada de bananas -, Tavares responde que passa a ideia de que a dançarina está louvando seus congêneres, o que traz referência a vários artistas do jazz americano que se apresentavam em Paris, quando o local era considerado domínio do cenário cultural.
“Para mim, a figura representa Josephine Backer, bailarina, atriz e cantora norte-americana que se naturalizou francesa. Durante suas apresentações, causava furor em Paris, pois realizava coreografias africanas, o que na época era absolutamente revolucionário. Por outro lado, também não podemos deixar de citar que a figura apresenta a questão do preconceito racial escancarado”, comentou.
Bottura finalizou dizendo que Josephine era considerada uma pessoa muito fina, definida como a representação de uma rainha e divindade. “É importante resgatarmos o significado desta mulher extraordinária, era uma pessoa que expressava dignidade e grande valor. A meu ver, foi certamente representada pela bailarina.”
Imagens: Reprodução Cine Debate APM