Na última sexta-feira, 30 de julho, o psiquiatra e psicoterapeuta Wimer Bottura Júnior coordenou mais uma edição do Cine Debate da Associação Paulista de Medicina, realizado virtualmente nesta temporada. O filme escolhido foi “Pieces of a Woman”, dirigido por Kornél Mundruczó. A atuação de Vanessa Kirby rendeu uma indicação ao Oscar, entregue este ano.
A narrativa é focada na jornada emocional de Marta (Kirby), que acabou de perder um bebê. Diante desse episódio, ela tem de lidar com as consequências que o seu luto traz às relações com a mãe e o marido. O roteiro é de Kata Wéber, que se inspirou em sua própria experiencia pessoal para produzir o material.
Sonia Maria Rolim Rosa Lima foi a primeira palestrante convidada da noite. A ginecologista e obstetra iniciou chamando atenção para o fato de os primeiro 28 minutos do filme, com exceção dos quatro iniciais, serem dedicados à cena do trabalho de parto, evidenciando o sofrimento enorme de Marta e angustiando o espectador.
“Vale destacar a interpretação ímpar de Vanessa Kirby, indicada ao Oscar de melhor atriz e vencedora [da categoria] no Festival Internacional de Cinema de Veneza. Ela tem um trabalho corporal e vocal primoroso, tendo em vista que ela nunca deu à luz”, comentou.
Parto domiciliar
Na sequência, Sônia, que ocupa a cadeira nº 107 da Academia de Medicina de São Paulo, focou na questão do parto domiciliar, modalidade realizada no filme. “Sabemos que nenhum parto é isento de risco e inúmeras mulheres perderam as suas vidas por falta de assistência médica. Por isso, o parto domiciliar é contraindicado pelas sociedades e federações de Ginecologia e Obstetrícia, pela Associação Médica Brasileira e pelo Conselho Regional de Medicina, mesmo durante a pandemia. É importante que as mulheres saibam disso.”
A especialista explicou que 15% dos partos são afetados por complicações, ainda que a gravidez tenha decorrido sem dificuldades. Nesses casos, se a mãe ou o bebê necessitarem de atendimento médico e não tiverem, podem ter sequelas ou morrerem, que é o que acontece no filme.
“Do momento em que a obstetriz, no filme, sugere a transferência da mãe para o hospital – o que a personagem não aceita – até o parto, se passam sete minutos. Depois, demora mais cinco minutos para a ambulância chegar. Ou seja, mesmo nessa velocidade, o bebê não foi salvo. Por isso, o parto domiciliar deve ser proscrito”, completou a especialista, que é professora Titular da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
O outro convidado do evento foi o médico ginecologista, sexologista e terapeuta sexual José Carlos Riechelman, que ocupa a presidência do Comitê Científico de Sexualidade Humana da APM.
“Concordo que devemos fazer partos no hospital. Nesse sentido, interessante não é levar o hospital para a casa da paciente, mas humanizar o hospital. Fazer da maternidade um local com menos aspecto de hospital de gente doente, tornando-o mais acolhedor. Além da humanização do comportamento da equipe profissional, também é preciso humanizar o espaço”, argumentou o também presidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática.
Riechelman ainda tocou em um ponto que tem ganhado relevância: a contratualização entre a grávida e o médico, obstetra ou parteira. A sua recomendação é que nesse acordo não haja o tipo de parto que deve ser realizado, pois isso leva, inclusive, a processos e responsabilizações no CRM. Não somente em relação ao parto domiciliar, mas também na opção por parto normal ou via cesariana.
O ideal, na visão do especialista, é se comprometer com o nascimento de final feliz, considerando que o modo do nascimento vai depender das condições clínicas, técnicas e médicas. “No filme, vimos que tudo ia bem até a hora que não ia mais. Essa complicação não tem aviso prévio, simplesmente acontece”, afirmou.
Debate
Após os comentários iniciais dos convidados, houve um tempo dedicado ao debate entre especialistas, espectadores do evento e o coordenador do Cine Debate. O psiquiatra falou, por exemplo, que o filme mostra a mudança da relação entre o casal principal a partir do episódio do aborto.
“Eles eram um casal feliz, sonhavam com uma criança e tinham planos. Mas não se pode esperar uma reação simples de um casal que passa por isso. Penso que uma das piores perdas que podem existir é a do filho, por mais que isso seja trabalhado em terapia e racionalizado depois. Sempre haverá a lembrança da perda”, disse.
Bottura também comentou que, em certos acontecimentos, ninguém tem culpa, mas a tendências das pessoas é sempre procurar um culpado. Quando se trata de um problema com um filho, a tendência é que os pais sejam alvo, sobretudo a mãe.
“A culpa gera necessidade de se livrar desse sentimento. Para me livrar da culpa, culpo alguém. E a tristeza, misturada à revolta e culpa, se alonga no tempo. Enquanto essa emoção, a tristeza, poderia ser compartilhada, ouvida e compreendida. Por mais que doa, a ferida tenderia a diminuir.”
Tentando encontrar aspectos de discussão clínica nos acontecimentos do filme, os espectadores perguntaram se seria possível mudar o destino da criança morta. Sônia Rolim lembrou que o médico, na ficção, diz que a maior probabilidade (de 60% a 70%) é que tenha faltado oxigênio para o bebê.
“O profissional realizou uma autopsia e não encontrou nada e deu o oxigênio como causa provável. Se fosse em um hospital, com oxigênio, a criança nasceria. Qualquer maternidade, pública ou privada, conta com um pediatra para aspirar ou passar oxigênio. Nesse caso, provavelmente o bebê teria sim sobrevivido, pelo que o médico do filme nos apresenta”, explicou a acadêmica.
Riechelman diz que lhe chamou atenção o fato de a criança nascer chorando, rosada e se mexendo. Somente depois de um instante é que ela para de chorar e fica roxa. Segundo sua explicação, quando há problema de oxigênio em um recém-nascido, a tendência é que a criança nasça com dificuldades e vá melhorando aos poucos, com o acompanhamento médico.
“Ela ter nascido chorando pode ser consequência do oxigênio, mas faz a gente pensar que pode ser outra coisa, como uma cardiopatia congênita, um problema metabólico ou uma questão de diabetes da mãe – várias coisas. Entendo que é um roteiro, mas se fosse para dizer que a criança morreu pelo parto, talvez fosse mais realista ter nascido morta”, afirmou o especialista.
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