Antes de entrar em recesso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou, no dia 22 de dezembro, a Lei 14.768, que define deficiência auditiva, estabelece o valor referencial da limitação auditiva e estende aos deficientes auditivos unilaterais totais os direitos garantidos a Pessoa com Deficiência (PcD). O projeto esteve em discussão por quase sete anos no Congresso Nacional e foi vetado integralmente em dezembro de 2022 pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Para justificar o veto dado em 2022, o governo Bolsonaro afirmou, em publicação no Diário Oficial da União (DOU), que o projeto ”engessava” a legislação. Além disso, ressaltou que a definição de ”deficiência” apresentada no texto da proposta era divergente do conceito previsto na Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146 de 2015), e que o melhor diagnóstico para definir o ”impedimento auditivo” seria o de competência médica, que possui caráter variável em função da evolução científica.
A proposta apresentada pelo Congresso amplia os direitos às pessoas que sofrem surdez total em apenas um dos ouvidos, conhecida como deficiência auditiva unilateral. Com a sanção da lei, é previsto que seja assegurada aos surdos unilaterais a reserva de vagas em concursos e a contratação por meio da Lei de Cotas, proporcionais ao número de empregados, por exemplo.
Porém, de acordo com a Lei 14.768/2023, serão considerados surdas as pessoas que possuem perda de 41 decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500 hz (quinhentos hertz), 1.000 hz (mil hertz), 2.000 hz (dois mil hertz) e 3.000 hz (três mil hertz).
No dia 14 de dezembro, os parlamentares do Congresso derrubaram, em sessão conjunta, o veto total de Bolsonaro ao Projeto de Lei 23/2016. Na definição do projeto aprovado pelo Congresso em dezembro de 2023, a surdez obstrui a participação plena e efetiva da pessoa na sociedade, em igualdade de condição com as demais pessoas. Após a discussão, o texto do projeto foi enviado à promulgação por parte do presidente Lula.
Antes da medida entrar em vigor, a lei considerava apenas a limitação bilateral, que ocorre em ambos os ouvidos, como deficiência.
Importância da aprovação da Lei 14.768
Em conversa com o JOTA, Sandro Cezar, presidente da Central Única dos Trabalhadores no Rio de Janeiro (CUT-Rio), um dos responsáveis pela articulação junto ao Planalto e portador de surdez unilateral, explica que o objetivo da norma é ajudar a efetivar cada vez mais a inclusão dos deficientes auditivos na sociedade, auxiliando com que as pessoas possam ser plenamente incluídas e ter o seu direito garantido.
Ao falar sobre a atuação para aprovação da lei, Sandro menciona que toda a articulação foi inicialmente feita no Congresso Nacional para que o veto do ex-presidente Bolsonaro fosse derrubado. Para ele, o veto impedia os surdos unilaterais de assegurar os mesmos direitos contidos no Estatuto da Pessoa com Deficiência.
”Nós fizemos as movimentações junto ao Congresso Nacional e, em seguida, fomos ao presidente Lula pedir que ele sancionasse a lei. E prontamente o governo atendeu essa reivindicação das pessoas com deficiência auditiva, os surdos unilaterais”, comenta.
Para ele, a sanção da lei é extremamente importante pois assegura o direito, uma vez constatado, ao surdo unilateral a ter os mesmos direitos que os demais deficientes possuem, previstos na Lei 13.146/2015, assim como as isenções tributárias que são garantidas aos deficientes físicos. ”Mas é óbvio que vamos discutir outras medidas que possam ajudar a gente”, pontuou.
Florisval Meinão, médico otorrinolaringologista, secretário-geral da Associação Médica Brasileira (AMB) e diretor de Patrimônios e Finanças da Associação Paulista de Medicina (APM), acredita que a entrada em vigor da legislação pode contribuir para delimitar de forma mais clara quais são os parâmetros para dizer quem é deficiente ou não, bem como proteger as pessoas que sofrem de deficiência auditiva unilateral total.
Além disso, de acordo com ele, a clareza em que a legislação define quem pode assegurar esses direitos pode evitar que eventuais fraudes possam acontecer, principalmente na questão da reserva de vagas em concursos. ”Às vezes pode ocorrer de as pessoas irem aos consultórios e pedir um laudo de deficiência auditiva, alegando não estar ouvindo tão bem, para poder prestar um concurso público com vantagens. Agora, com essa lei, ela servirá para colocar mais clareza nessa situação”, narra.
Para Danielly Cunha de Carvalho, médica otorrinolaringolista do Insituto CEMA, a lei se mostra muito importante, pois promoverá, de certa forma, a inclusão de pessoas reconhecidamente portadoras de deficiência, bem como se mostrará um importante mecanismo de concretização e promoção da igualdade material.
”A lei formaliza um direito que já é reconhecido através da Convenção Internacional das Pessoas portadoras de Deficiência, do qual o nosso país é signatário há um bom tempo”, acrescenta a especialista. ”Dessa forma, se mostra assertiva e justa a nova lei, oportunizando aos portadores de surdez unilateral, que concorram às vagas reservadas as PcDs”, pontua.
O que é a surdez unilateral e quais as suas causas
A surdez unilateral ocorre quando a pessoa perde a audição, parcial ou completa, em apenas um dos ouvidos. A sua ocorrência pode estar associada a diversas causas diferentes.
Desse modo, Meinão explica que algumas das circunstâncias que podem levar alguém a perder a audição de um lado só, como a surdência súbita – que é irreparável na maioria dos casos –, as infecções e bactérias, a caxumba e os tumores, por exemplo.
”Existem vários tumores que podem acontecer ou no ouvido ou no trajeto do nervo auditivo. Ele [o nervo auditivo] sai da nossa orelha, do nosso ouvido, e tem um longo trajeto no cérebro até chegar ao córtex auditivo, que é a parte responsável pelas informações auditivas. E nesse trajeto podem ter tumores ou algumas doenças inflamatórias neste nervo, que provocam também perda de audição definitiva e total”, explica o especialista.
No caso da perda auditiva unilateral por conta das infecções, ela ocorre quando elas não são tratadas efetivamente pelos pacientes, provocando sua evolução e, consequentemente, a perda da audição. Além das infecções, a presença de bactérias com toxinas no ouvido pode lesar definitivamente o ouvido.
Impactos para a vida em sociedade
Florisval Meinão ilustra que quando alguém perde a audição biauricular – em que as ondas sonoras são captadas pelas duas orelhas –, ela perde a capacidade de localizar a fonte da origem sonora, o que se torna um grande prejuízo. Ele explica que em alguns casos, após muito treinamento, a pessoa talvez consiga identificar de onde vem o som, mas isso pode não acontecer na maioria das lesões.
Em situações do cotidiano, como no trânsito ou em estações de metrô, em que pode surgir uma situação de emergência repentina, Meinão relata que quem sofre de deficiência auditiva unilateral total pode acabar enfrentando algumas dificuldades por não saber localizar a origem sonora e, consequentemente, não conseguir identificar o problema ou o que está acontecendo ao seu redor com clareza.
Do ponto de vista trabalhista, o especialista comenta que o deficiente auditivo unilateral também pode encarar certas limitações e enfrentar dificuldades de contratação em empresas aéreas, em ambientes de trabalho perigosos ou em companhias de transporte metroviário, por exemplo. ”Algumas empresas já têm os seus protocolos para evitar a contratação de pessoas com essas características. Então, por essas dificuldades, elas precisam ter uma legislação que as proteja, que eu acredito ser essa lei”, concluiu.
Na perspectiva técnica, segundo Carvalho, não há que se duvidar que pessoas com surdez unilateral não podem concorrer em igualdade de condições com pessoas sem nenhum tipo de deficiência. A médica explica que o indivíduo com perda auditiva unilateral apresenta dificuldade em compreender a fala em ambientes ruidosos. Além disso, ela ressalta que a localização espacial das fontes sonoras fica comprometida, em função da redução do beneficio binaural.
Fonte: Mirelle Carvalho | Jota