Às 22h47, um influenciador digital – que vende mentoria para pessoas com transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) – responde à minha mensagem de texto, enviada quatro horas antes, via WhatsApp.
“Desculpe a demora. Estava em uma live”, diz. Explico, então, que tenho dúvidas sobre como saber se possuo o transtorno.
A conversa segue. Ele conta que é importante procurar um psiquiatra para ter “certeza absoluta” do diagnóstico.
A narrativa, porém, termina com um “mas”: o homem informa que a sugestão dele é que eu, na verdade, faça o teste de TDAH que está disponível em seu perfil do Instagram.
No site do curso que o influenciador oferta, a promessa é a de que, com as aulas, os alunos poderão vencer a desatenção.
Com quase 200 mil seguidores no Instagram, o “professor” em questão é empresário e, ao apresentar o seu vasto currículo na área de Administração, não indica formação no campo da saúde mental. O homem se liga ao tema por dizer que é, ele mesmo, alguém com TDAH.
É um caso comum. Só no TikTok, a hashtag “TDAH” acumula mais de 1 bilhão de visualizações e #TesteTDAH tem 1,9 milhão.
Com isso, a Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) – entidade que auxilia pessoas que convivem com o transtorno – teme que a doença seja banalizada e tratada inadequadamente.
“Vidas são destruídas por causa do TDAH. A gente vê o sofrimento dessas pessoas. Se não tratado corretamente, há consequências graves”, diz a presidente, a neuropsicóloga Iane Kestelman.
Os posts sobre o tema, que chamam a atenção da associação, englobam dicas “milagrosas”, piadas sobre a convivência com o transtorno e testes para autodiagnóstico. Dos últimos, a maioria leva às páginas de venda dos influencers e costuma ser inspirada em escalas da Psicologia e na ASRS-18, uma escala autoaplicável usada para a avaliação de adultos.
Segundo o Conselho Federal de Psicologia (CFP), porém, os métodos para testagem de TDAH são diversos e interdisciplinares, mas aqueles usados por psicólogos são privativos da profissão.
O CFP afirma que o diagnóstico e o tratamento exigem que o paciente passe por diferentes profissionais. “Para que não haja um cenário de superdiagnóstico e uma consequente hipermedicalização”, diz Izabel Hazin.
Assim, popularizar o transtorno pode levar mais pessoas ao atendimento profissional, mas pode ser uma brecha para aproveitadores.
“Em um tratamento que não é preconizado pela ciência, a pessoa vai jogar dinheiro fora. Isso não é honesto. Dependendo dos conselhos e intervenções que podem ser feitas, a pessoa pode piorar muito”, destaca Iane.
Carlos Rafael, conhecido como Tu Evangelista, convive com o TDAH, é mestre em neuropsicologia e coach. Ele destaca os benefícios de usar técnicas de coaching para auxiliar na minimização de sintomas, mas afirma que uma redução de problemas só é possível com apoio de médicos e psicólogos. “O TDAH é um transtorno. Por mais que o paciente precise de auxílio com organização, e isso conte no universo do coaching, é algo completamente diferente”, explica. A ABDA não é contra coaching ou divulgação de informações online, mas destaca que na internet grupos vêm se beneficiando daqueles que procuram ajuda.
SINAIS
Iane destaca que, ao encontrar serviços online, é importante pedir as credenciais de quem está ofertando. Ela afirma que muitos influenciadores se apresentam como donos do “maior perfil sobre TDAH do Brasil”, entre outros adjetivos e títulos, mas o número de seguidores não deve ser parâmetro para credibilidade.
Já para o psiquiatra e criador do Ambulatório de TDAH na Infância e Adolescência do Hospital das Clínicas (HC/USP), Ênio Roberto de Andrade, um dos grandes problemas é a promoção da ideia de “cura” da hiperatividade.
Segundo o médico, é possível reduzir sintomas, mas o paciente continuará apresentandoos. O TDAH é um distúrbio neurobiológico crônico que se caracteriza por dificuldade em prestar atenção a detalhes e tarefas, esquecimento, dificuldade com organização, desassossego ou impulsividade.
Esses sinais podem durar a vida toda.
Além da indicação do questionário online, o influenciador apresentou à reportagem a seguinte estratégia: “Uma outra coisa que você pode fazer é um testezinho com 59 comportamentos. Veja os comportamentos, anote quantos você tem e clique no link da bio”. O link leva à página de vendas.
A indicação exemplifica como os testes e posts para diagnóstico nas redes sociais funcionam: costumam oferecer soluções rápidas e imediatas. Em contrapartida, nos casos de suspeita de TDAH, profissionais recomendam que seja realizada uma avaliação clínica e psicossocial completa.
O diagnóstico deve ser realizado por um psiquiatra ou neurologista, em parceria com psicólogo.
Como outros transtornos mentais, o diagnóstico é clínico, por entrevista com o paciente e familiares, com foco em suas queixas atuais e anteriores, prejuízo às funções do dia a dia e diagnósticos de exclusão.
TRATAMENTO
Andrade destaca que, para tratar o TDAH, se o transtorno for de moderado a grave, não há outra opção a não ser medicamentos estimulantes.
Porém, se os sintomas forem leves, é possível realizar o tratamento com psicoterapia, sendo mais recomendada a cognitivocomportamental. O médico alerta sobre a necessidade de seguir essas recomendações ao buscar profissionais na internet.
“É importante saber se essas pessoas (coaches e influenciadores) são capacitadas para fornecer esse tipo de terapia”, afirma. Para ele, a adesão aos tratamentos alternativos é muito grande porque as pessoas sentem que estão “escapando” do estigma associado às doenças mentais e consultas psiquiátricas. Assim, um passo importante para o tratamento correto é desmistificar preconceitos quanto às questões de saúde mental.
Fonte: O Estado de S.Paulo