Em continuidade à programação de webinars, no dia 23 de março, a Associação Paulista de Medicina debateu o tema “Autonomia do Paciente: Importância e Limitações”, com palestras de Alfredo José Mansur, diretor do corpo clínico do InCor, e Alfredo Domingues Barbosa Migliore, professor de Direito da USP e da FGV.
“Há várias décadas que se observa uma profunda transformação na relação entre médico e paciente. De um tempo que já vai longe, nós – os médicos – decidíamos o que fazer e a expectativa era que os pacientes aceitassem nossas decisões sem discuti-las. Hoje, essa realidade se transformou completamente”, destacou o presidente da APM, José Luiz Gomes do Amaral, em abertura virtual do evento, voltado a profissionais da Saúde, estudantes e demais pessoas interessadas no assunto.
Amaral acrescenta que a autonomia do paciente é uma característica das relações atuais, evidentemente acompanhadas de possíveis limitações, seja na atribuição do médico em decidir e escolher o tratamento, seja na do paciente em também decidir a aderir ou aceitar as alternativas diagnósticas e terapêuticas. “Portanto, estudar essas limitações com profundidade é fundamental.”
Em seguida, o diretor Científico da APM, Paulo Manuel Pêgo Fernandes, moderador da reunião, fez uma breve apresentação curricular dos palestrantes. “Temos observado as inúmeras discussões sobre autonomia. Com a pandemia, acentuaram-se ainda mais os debates. É óbvio que há muitas opiniões a serem ouvidas, mas a limitação do nosso tempo não permite ampliar, portanto escolhemos a visão de um médico, o professor Alfredo José Mansur, e de um advogado, consumidor e paciente, Alfredo Domingues Barbosa Migliore, para que haja um contraponto diante desse assunto inesgotável.”
Graus variáveis de autonomia
O livre-docente em Cardiologia pela Universidade de São Paulo Alfredo José Mansur expôs a autonomia do participante de pesquisa (população geral, assintomáticos, sem doenças, portadores de condição considerada de maior risco, enfermos), vinculados a instituições assistenciais, acadêmicas, profissionais, suporte social, entre outras atribuições, sob o ponto de vista conceitual da Organização Mundial da Saúde e da Organização Nacional de Regulação Ética do Sistema CEP-Conep.
“De modo geral, o conceito da autonomia se modifica em relação à natureza do participante. Decorre sob os pontos de vista da regulação e ético e trabalha com a possibilidade de lidar com os graus de vulnerabilidade das pessoas. Se estamos lidando com adultos, com portadores de limitações cognitivas, com crianças e adolescentes, com grupos especiais que têm padrões culturais diversos ou próprios de comunidades. Esse diálogo entre a autonomia e a vulnerabilidade é mediado pela sua dimensão ética, regida pelo nosso sistema CEP-Conep”, explana.
Mansur destaca que autonomia é um dos quatro pilares fundamentais da bioética. Também é reconhecida com um dos fundamentos da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, em seu artigo 5º – Autonomia e Responsabilidade Individual: “Deve ser respeitada a autonomia dos indivíduos para tomar decisões, quando possam ser responsáveis por essas decisões e respeitem a autonomia dos demais. Devem ser tomadas medidas especiais para proteger direitos e interesses dos indivíduos não capazes de exercer a autonomia”.
A resolução 466/2012 do Ministério da Saúde declara: “A autonomia da pessoa de participar ou não de uma pesquisa é registrada por meio da assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), no qual devem constar informações claras e relevantes acerca do objeto de pesquisa, seus benefícios, riscos e desconfortos, a gratuidade pela participação, o ressarcimento de despesas em que venha a incorrer, a garantia de reparação dos danos causados em sua execução e a faculdade de retirada imotivada do consentimento a qualquer tempo sem qualquer prejuízo a sua pessoa”.
O livre-docente resume que autonomia é evidentemente uma questão ética que suscita uma gama enorme de possibilidades, dúvidas e discussões, pressupondo um diálogo entre o agente e o que recebe a ação, o participante de pesquisa ou o paciente. “Seu conceito tem uma natureza dialógica entre a autonomia e a situação que se defronta, respaldada por uma dimensão ética do nosso sistema de regulação.”
Reflexões e dilemas
O mestre e doutor pela Faculdade de Direito da USP Alfredo Domingues Barbosa Migliore trouxe para a discussão o embate bioético de inspiração católica, que preza pelo respeito à vida, muito presente no contexto social brasileiro, em comparação à bioética anglo-saxônica, que considera a autonomia e o utilitarismo, predominante em países do Hemisfério Norte.
“A nossa história da bioética nasce, assim, nas faculdades católicas, e mostra um antagonismo muito grande, porque a bioética de inspiração católica traz o olhar do direito à vida, inato e fundamental, que têm de ser respeitado antes de tudo. Nesse privilégio de direito à vida, sempre vence o não abortamento, sempre vencem as limitações que a própria discussão pode trazer”, exemplifica.
Ele ressalta que nos países do Hemisfério Norte, antes de se falar em respeito à vida, o debate é sobre a dignidade, em motivo, função e utilidade da vida. “Por isso, enquanto aqui com a bioética de inspiração católica, pedaços de tecidos, células amorfas e embriões pré-implantacionais são considerados – no mesmo nível filosófico ou até mesmo jurídico – uma pessoa, nas regiões do Norte, particularmente, na Inglaterra, nos Estados Unidos e em algumas províncias canadenses, o que prevalece não é uma amostra de tecido ou um embrião que não tem qualquer tipo de célula diferenciada, o que prevalece é o critério da autonomia”, explica.
A partir daí, surge a primeira dicotomia da história das escolas bioéticas. “No entanto, há uma grande discussão no Brasil porque as escolas de Medicina passam a adotar de maneira muito mais intensa a filosofia utilitarista. Por exemplo, quando se fala de morte cerebral, encefálica, nasceu o conceito utilitarista, não sei se aquela pessoa vai voltar, não tenho parâmetro nenhum para crer que aquilo é irreversível, ao contrário, não consigo reverter voluntariamente, porém já que é assim, vamos usar a ferramenta legal para que possamos abreviar essas vidas que não consigo trazer de volta para viabilidade.”
Migliore, deste modo, reforça que o sistema ético e bioético do sistema jurídico brasileiro se baseia no meio termo entre personalistas e utilitaristas. “Há setores na sociedade que são personalistas, contrários à interrupção voluntária da gestação, uma opinião distinta das classes médica e bioética de maneira geral”, explica.
No Direito Civil, ele explica que a “autonomia” é entendida como princípio da liberdade de agir, da sua consciência e autodeterminação, da sua vontade e do seu próprio interesse.
“A autonomia, um termo complexo, não existe no direito civil clássico, preciso pensar na autonomia dentro do direito das vontades, da liberdade de contratar ou descontratar. Não existe uma identidade de conceitos nem sequer um diálogo entre o conceito da autonomia da bioética e da autonomia de vontade do indivíduo. São questões divorciadas e distintas em esferas e planos longínquos de duas galáxias diferentes. E a pergunta que se faz aqui: ‘Um recém-nascido tem autonomia?’ Essa pergunta trará mais para perto o bioeticista e o jurista. Ninguém tem dúvidas de que o recém-nascido tem direitos, mas não autonomia”, exemplifica.
Assim, de acordo com o estudioso, a autonomia se difere da capacidade de agir, uma aptidão para manifestar validamente sua vontade e agir em consonância com ela. Dentre outros casos que Migliore trouxe para elucidar o debate, destacam-se o direito de uma menina de ir ao ginecologista e ter suas informações resguardadas, a autorização ou não de doações de órgãos, transfusão de sangue quando se defronta com crença religiosa, eutanásia versus ortotanásia e o dilema da vacina para menores.
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