Em 8 de outubro, a Associação Paulista de Medicina recebeu jornalistas, em sua sede, para divulgar pesquisa com a percepção de 695 médicos sobre formação, revalidação de diplomas expedidos no exterior e, entre outros temas, o programa ‘Médicos pelo Brasil’, criado pelo Ministério da Saúde por meio da Medida Provisória 890/19.
Durante a entrevista coletiva à imprensa, o presidente da APM, José Luiz Gomes do Amaral, reforçou que os médicos são contrários às emendas aprovadas pela Comissão Mista que analisou a MP, já que elas deformam o projeto em pontos importantes.
Vale destacar que a versão original do ‘Médicos pelo Brasil’ foi bem recebida por toda a classe, esperançosa de que venha a corrigir algumas das graves distorções estabelecidas pelo programa ‘Mais Médicos’.
O levantamento da APM, realizado entre 23 e 30 de setembro pela plataforma SurveyMonkey, aponta que 49% dos médicos entendem que o projeto seria mais importante para a distribuição dos profissionais pelo País; 26,2% ressaltaram a criação de uma Carreira de Estado Federal; 14,8% destacaram o crescimento de especialistas em Medicina de Família e Comunidade; e 10% priorizaram o controle da atuação de médicos formados no exterior sem diploma revalidado na avaliação de qual seria o melhor ponto do ‘Médicos pelo Brasil’, já que a pergunta só permitia uma resposta. Enfim, todos veem qualidades no programa, sob aspectos diversos.
Malfeito parlamentar
O cenário, entretanto, mudou de direção. Após a apreciação da Comissão Mista, formada por deputados e senadores, o texto teve 36 emendas enxertadas e outras 82 parcialmente acatadas. Com as alterações aprovadas em 25 de setembro, a MP transformou-se no Projeto de Lei de Conversão 25/2019, encaminhado à Câmara dos Deputados para apreciação em Plenário, o que também ocorrerá no Senado.
Entre as emendas mais nocivas acolhidas pelo relator do projeto, senador Confúcio Moura, está a regra “excepcional e transitória” para admissão direta de médicos cubanos do ‘Mais Médicos’, na condição de intercambistas.
Outro ponto de preocupação: a comissão aprovou a emenda – originalmente rejeitada pelo relator – oferecida pelo deputado Alexandre Padilha, que permite aos estados, isoladamente ou em consórcios, executar diretamente o programa, “Mais Médicos” podendo para isto firmar acordos inclusive com organismos internacionais e instituição de educação superior estrangeiras.
Moura também acolheu a emenda que permite a faculdades privadas a aplicação do Revalida, o que tende a se transformar em um balcão de negócios para facilitar a entrada de milhares de graduados na fronteira sem que comprovem adequadamente estarem capacitados para o exercício da Medicina.
“A proposta inicial foi contaminada por uma série de emendas que a desfiguraram completamente, tornando o remédio muito pior do que a doença que visava curar. Aquilo que pensávamos ser o fundo do poço, aparentemente não era. Os responsáveis são uma série de parlamentares, de diversos matizes. Alguns remanescentes do Governo anterior, mais preocupados em garantir a sobrevivência do ‘Mais Médicos’, outros com a única preocupação de garantir o grande negócio que se tornou uma faculdade de Medicina. Portanto, esse é um momento crítico”, argumenta Amaral.
Revalidação de diplomas
98% dos médicos pesquisados pela APM acreditam que a revalidação dos diplomas de profissionais formados no exterior é imprescindível para a segurança da assistência. Deste número, 91,7% entendem que devem passar pelo processo brasileiros e estrangeiros indiscriminadamente; 5,6% a defendem apenas a estrangeiros; enquanto 0,7% acredita que apenas médicos de alguns países devem revalidar seus diplomas.
“Não há país no mundo que receba médicos formados fora de suas fronteiras sem que sejam submetidos à avaliação. E aí não há nenhuma diferença se são brasileiros, americanos, colombianos, bolivianos, etc. É importante que qualquer um que venha nos atender, cuidar da saúde da nossa população, tenha habilitação para tal, sejam eles brasileiros ou estrangeiros. É isso que os médicos entendem”, avalia o presidente da APM.
Conforme dados do Ministério das Relações Exteriores – divulgados em reportagem especial do Estadão -, as faculdades de Medicina localizadas nas fronteiras do Brasil com Argentina, Bolívia e Paraguai já ultrapassam 65 mil estudantes brasileiros, reunidos em 39 instituições, o que representa mais de 1/3 do total de vagas para alunos de Medicina no Brasil, segundo o Censo da Educação Superior de 2018.
De acordo com Amaral, trata-se de mais uma faceta de uma indústria de ensino estabelecida para alimentar o mercado com estudantes brasileiros, que aqui enfrentavam duas barreiras: “Ou o vestibular, nas públicas com concorrência bastante grande, ou as mensalidades nas privadas, com custos mais elevados. Criou-se um sistema paralelo, que é o comércio de diploma a baixo custo”.
As mensalidades nestas localidades costumam variar entre R$ 700 e R$ 2.000, enquanto no Brasil o valor gira entre R$ 5.000 e R$ 12.000. Via de regra, a estrutura dessas escolas é precária, com falta de laboratórios, bibliotecas e pouco ou nenhum local para a prática clínica. O boom de estudantes nas regiões fronteiriças ocorreu nos últimos anos por conta do programa ‘Mais Médicos’, que permitiu a possibilidade de trabalho no Brasil sem a necessidade de revalidação do diploma.
Ainda segundo o Estadão, os brasileiros formados no exterior que se aventuram a fazer o Revalida têm índice baixíssimo de aprovação, 19,9% na média entre 2011 e 2017. E como não poderia deixar de ser, a busca pela revalidação também cresceu sobremaneira no período. Enquanto em 2011 havia 297 brasileiros inscritos para a prova de revalidação, e 234 profissionais brasileiros formados na Bolívia, estes números dispararam para 4.267 e 4.032 em 2017, respectivamente.
“São dados estarrecedores. A avaliação feita pelo Revalida é de conhecimentos básicos. Não se busca saber se o indivíduo é totalmente qualificado para Medicina. É um exame apenas de conhecimento. E mesmo nesse nível observamos que a aprovação é muitíssimo baixa”, pontua o presidente da APM.
Exame de egressos
A pesquisa da Associação Paulista de Medicina também abordou a possibilidade de uma avaliação de egressos das faculdades brasileiras e os médicos voltaram a ser taxativos: 69,3% entendem que o exame deve existir e que apenas os aprovados possam obter o registro profissional. 18,56% concordam com a aplicação e a realização obrigatória, mas não como condição para o registro de médico. 8,7% não concordam com a existência do exame e outros 3,3% acreditam que ele deve ser facultativo.
Em relação a essa questão, José Luiz Gomes do Amaral enfatiza um aspecto que considera básico na postura dos médicos: o fato de o princípio fundamental da Medicina ser sempre o interesse do paciente. Portanto, diz ele, é absolutamente necessário que seja preservada a qualidade da formação dos profissionais de Saúde.
“Hoje são 339 escolas médicas no País, com a maioria absoluta sem cenário de prática adequado e sem serviço de saúde associado. Não tem sentido achar razoável fazer um exame para os formados no exterior e não achar que deve haver um para o Brasil. Se nossa preocupação é com a segurança das pessoas, temos que cogitar esse exame e que ele seja qualificatório, assim como entende a maioria dos nossos pesquisados. Sem aprovação, não deve haver autorização para clinicar”, completa o presidente da Associação.
“Em relação à qualidade das faculdades de Medicina, qual a melhor sugestão?” – a essa pergunta, 39,5% dos médicos foram categóricos: fechamento dos cursos com baixa qualidade na formação. Outras possibilidades com bastante adesão: maior rigor nos critérios e locais para a abertura de novas faculdades de Medicina (29,5%); e concessão de registro profissional apenas mediante aprovação em exame obrigatório de egressos (27,7%). Apenas 3,1% apontaram a opção de reduzir o número de vagas em cursos com baixa qualidade na formação.
Ainda durante a coletiva na APM, foram ressaltados os índices de reprovação do Exame do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) – que avaliava os egressos em São Paulo até o ano passado – nos últimos anos. A última edição, de 2018, teve 38,2% dos médicos reprovados. Em outros anos, os índices de reprovação foram igualmente assustadores, por exemplo, 61% em 2008, 59,2% em 2013 e 56,4% em 2016.
Amaral observa que, por ser facultativo, os estudantes que se submetiam à avaliação eram, supostamente, alguns dos mais preparados. “Além disso, assim como no Revalida, as questões são simples. Os resultados deixam evidente que muitas das faculdades do Brasil não são tão diferentes das que estão nas regiões fronteiriças. É necessário que tenhamos olhos nas duas situações: dentro e fora das fronteiras.”
Marun David Cury, diretor de Defesa Profissional da APM, ressalta que a Associação de quase 90 anos sempre se preocupou, em toda sua história, com a qualidade da assistência à população. “Essa é, inclusive, a razão desta pesquisa. Também queremos que os médicos tenham formação correta e suficiente para poder dar atendimento de extrema qualidade aos cidadãos. Esse é o nosso papel”, finaliza.