Confira na íntegra o texto elaborado em conjunto por João Sobreira de Moura Neto, vice-presidente da Associação Paulista de Medicina, e Francine Curtolo, assessora jurídica da instituição, a respeito da realização de procedimentos executados por indivíduos não médicos e as suas problemáticas:
Recentemente, a morte de um jovem empresário em São Paulo, durante um procedimento de peeling de fenol, suscitou o debate e a reflexão sobre questões importantes da prática e da regulamentação de procedimentos estéticos no país.
Neste artigo, examinamos os aspectos técnicos e legais que envolvem esse trágico e fatídico acontecimento que, infelizmente, não é um caso isolado no Brasil, pois rotineiramente leigos ou profissionais de outras áreas estão exercendo a medicina e realizando atos restritos aos médicos, especialmente procedimentos estéticos.
A regulamentação das profissões de saúde no Brasil é uma questão sensível que demanda precisão na definição das competências e dos limites de atuação de cada categoria profissional. Nesse contexto, a Lei nº 12.842, de 20 de julho de 2013, conhecida como “Lei do Ato Médico”, é um marco significativo, pois estabelece parâmetros para a atividade médica e determina quais são as atividades e os atos exclusivos de profissionais graduados em curso superior de medicina.
De acordo com o artigo 4º da Lei, são atuações privativas do médico:
- Indicação e execução da intervenção cirúrgica e prescrição dos cuidados médicos pré e pós-operatórios;
- Indicação da execução e execução de procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos, incluindo os acessos vasculares profundos, as biópsias e as endoscopias;
- Intubação traqueal;
- Coordenação da estratégia ventilatória inicial para a ventilação mecânica invasiva, bem como das mudanças necessárias diante das intercorrências clínicas e do programa de interrupção da ventilação mecânica invasiva, incluindo a desintubação traqueal;
- Execução de sedação profunda, bloqueios anestésicos e anestesia geral;
- Emissão de laudo dos exames endoscópicos e de imagem, dos procedimentos diagnósticos invasivos e dos exames anatomopatológicos.
- Determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico;
- Indicação de internação e alta médica nos serviços de atenção à saúde;
- Realização de perícia médica e exames médico-legais, excetuados os exames laboratoriais de análises clínicas, toxicológicas, genéticas e de biologia molecular;
- Determinação de prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico;
- Indicação de internação e alta médica nos serviços de atenção à saúde;
- Realização de perícia médica e exames médico-legais, excetuados os exames laboratoriais de análise clínicas, toxicológicas, genéticas e de biologia molecular;
- Atestação médica de condições, de saúde, doenças e possíveis sequelas;
- Atestação do óbito, exceto em casos de morte natural em localidade em que não haja médico.
Ainda, o Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2.217/2018) prevê normas que devem ser seguidas pelos médicos no exercício de sua profissão, inclusive nas atividades relativas a ensino, pesquisa e administração de serviços de saúde. É direito dos médicos indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente, ficando vedado “causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência” (artigo 1º).
A legislação é clara ao determinar que procedimentos invasivos e de alto risco deve ser realizados por médicos, justamente por se tratar de atividade privativa do médico a indicação e a execução de tais procedimentos, seja para fins diagnósticos, terapêuticos ou estéticos.
Neste sentido, o peeling de fenol é um procedimento indicado para tratar casos de envelhecimento facial severo e que utiliza um agente químico poderoso para remover camadas da pele e, devido a sua natureza tóxica, pode causar efeitos colaterais e complicações como dor intensa, cicatrizes, infecções e até mesmo arritmia cardíaca e insuficiência renal. Assim, é essencial que seja conduzido por médicos habilitados e em ambientes adequados e monitorados, preferencialmente hospitalar.
Portanto, em conformidade com a legislação brasileira a realização de um peeling de fenol, por se tratar de procedimento invasivo e de alto risco deve ser feito por médico, sob pena de configurar violação direta a Lei do Ato Médico. Além, da responsabilidade civil – se houver comprovada negligência, imprudência ou imperícia por parte do profissional que realizou o procedimento e da clínica onde foi realizado. E, se for comprovado que o procedimento foi realizado por profissional não médico, poderá
configurar ilícito penal de exercício ilegal da medicina, disposto no artigo 282, do Código Penal, com pena de detenção de 6 meses a 2 anos, além da aplicação de multa.
O crime de exercício ilegal da medicina implica, entre outras práticas, a realização de procedimentos invasivos (diagnósticos, terapêuticos ou estéticos) caracterizados por inserções ou aplicações de substâncias que vão além das camadas superficiais da pele, exigindo capacitação técnica oferecida apenas por médicos.
Infelizmente, observamos uma realidade distorcida (e preocupante) no Brasil de exercício ilegal da medicina que, segundo levantamento divulgado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), entre 2.012 e 2.023, o país registrou cerca de 10 mil boletins de ocorrência e processos judiciais por exercício ilegal da medicina, ou seja, agindo com negligência, imperícia e imprudência, esses indivíduos excederam seus limites legais, estabelecidos pela Lei do Ato Médico, que torna exclusivos dos médicos a realização de procedimentos invasivos, dentre outras atividades. O estudo levou em conta números oficiais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e das Polícias Civis de 22 Estados, sendo o Rio de Janeiro o estado com o maior número de registros nas delegacias de polícia, seguido por São Paulo e Minas Gerais.
Muitos desses casos implicaram em prejuízos financeiros, sequelas de diferentes níveis, inclusive danos morais, e até morte de pacientes atendidos por profissionais sem formação médica.
Os procedimentos estéticos invasivos sendo conduzidos por profissionais sem qualificação em medicina, coloca em risco a saúde e a segurança da população.
Em breve navegação na internet é possível observar inúmeras informações falsas de saúde (fake News da saúde), venda indiscriminada de medicamentos, anúncio de cursos desqualificados, promessas milagrosas, em prejuízo à saúde em geral. Quanto maior a ignorância a respeito da área médica, maior a ousadia dos que querem atuar dentro dela. Sofrem aqueles que, também por ignorância, acreditam nesses criminosos. O pobre rapaz pagou com a própria vida.
Os Conselhos de Medicina regulamentam e fiscalizam do ponto de vista ético e técnico os profissionais médicos, aplicando as sanções pertinentes em caso de inobservância das normas. Porém, não têm nenhum tipo de gerência sobre outros conselhos ou profissões, de sorte que a apuração e punição da prática ilegal da medicina cabe à justiça, ao ministério público e à polícia.
O caso do peeling de fenol evidencia a necessidade de uma fiscalização mais rigorosa por parte do Poder Público e Privado, assim como campanhas educativas para conscientizar a população sobre os riscos de realizar procedimentos estéticos com profissionais não qualificados.
De todo modo, entendemos que os Conselhos e as Entidades Médicas têm o papel fundamental de alertar com veemência a população, razão de suas existências, dos riscos que corre ao se submeter a procedimentos com quem não tem habilitação comprovada e competência técnica, bem como, achamos que devem denunciar de forma ativa tais atos, independentemente de quem os comete, visando coibir abusos e irregularidades nesta área, principalmente para prevenir tragédias semelhantes no futuro.
Também alertamos a população para se informar sobre os serviços e/ou procedimentos de saúde a serem realizados e sobre a habilitação e qualificação técnica do profissional envolvido, pois comumente nos deparamos com tratamentos de saúde, principalmente estéticos e alternativos, ofertados à população por não médicos, que, muitas vezes, invadem as prerrogativas privativas da medicina e podem gerar complicações.
Respeitar o ato médico é zelar pela saúde e segurança da população!
São Paulo, 20 de junho de 2024.
João Sobreira, 1º Vice-Presidente da Associação Paulista de Medicina e Médico, Oftalmologista
Francine Curtolo (OAB SP nº 185.480), Assessoria Jurídica da Associação Paulista de Medicina