Stênio J. C. Miranda – Município, o último elo da corrente do SUS

Cosems integra secretários de Saúde para fortalecer diálogo e pactuações no sistema público

Entrevistas

Também cientista social por formação, Stênio José Correia Miranda ocupa atualmente a posição de secretário municipal de Saúde de Ribeirão Preto, além da presidência do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado de São Paulo (Cosems/SP). Nesta conversa com a Revista da APM, o médico – formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e especialista em Neurologia Clínica – fala sobre o papel dos municípios entre os entes federativos do Sistema Único de Saúde (SUS), a articulação destas partes e sobre as especificidades da administração regional. Confira a seguir.

Como o senhor enxerga, em linhas gerais, a Saúde do País hoje?

Vejo a Saúde de maneira muito positiva. Desde a criação do SUS, avançamos muito graças a um sistema que tem âmbito nacional, que possui diretrizes, prioridades e regramentos que valem para todo o País e que serviu de eixo de organização das ações. Nós conseguimos eliminar doenças que provocavam mortes e sequelas, principalmente em crianças, como a paralisia infantil, reduzimoso índice de mortalidade infantil – que ainda é alto, mas não em níveis escandalosos – e implantamos um programa nacional de transplante de órgãos com acesso integral e gratuito. Também levamos profissionais de Saúde para regiões que antes não recebiam nenhuma atenção, onde as pessoas nasciam, viviam e morriam sem conhecer um médico ou enfermeiro. De qualquer forma, claro que ainda há um caminho a percorrer. O maior obstáculo hoje é financeiro. Países que possuem sistemas de Saúde como o nosso empregam 10 a 12 vezes mais recursos do que nós. Também existe a falta de profissionais qualificados que possam contribuir com as nossas equipes. O aparelho formador das instituições de ensino ainda não entrega profissionais que tenham entendimento do que seja a Saúde pública em grande quantidade. Precisamos, ainda, evoluir na compreensão das pessoas sobre o que é o SUS, constantemente exposto de maneira negativa e pejorativa.

Como presidente do Cosems/SP, pode nos esclarecer um pouco sobre o papel deste órgão em prol da Saúde pública?

Nós somos um conselho de secretários municipais de Saúde. Hoje, temos em São Paulo 96% dos municípios do Estado associados espontaneamente. O nosso papel é o de representar os municípios na relação com os outros entes federativos do SUS – Estado e União. A política pública de Saúde é resultado de um regramento constitucional e legal, mas também de pactuações que devem ser feitas regularmente e com dinamismo próprio: elas são revistas, renovadas e ampliadas sempre. Então, nossa principal missão é a de representar os municípios na formulação e no estabelecimento destas pactuações. Além disso, o Cosems também é um órgão de orientação e apoio técnico aos secretários que eventualmente necessitam de auxílio.

Atualmente, qual o papel dos municípios na cadeia do SUS?

O principal papel do município é a execução, propriamente dita, dos serviços de Saúde. Ao mesmo tempo, ele tem responsabilidade de participar do financiamento dentro de sua proporcionalidade, da formação de pessoas para o sistema de Saúde e da elaboração de novos regramentos e diretrizes. As ações mais específicas, no entanto, são mesmo de execução dos serviços, sobretudo no âmbito da atenção primária – ou seja, na prevenção, promoção de Saúde e tratamento de doenças de menor complexidade.

Como enxerga a autonomia de cada município para fazer a sua própria gestão da Saúde?

Nós temos um direcionamento constitucional que está atrelado à Saúde e a relação dos entes federativos – todos são autônomos para identificarem suas prioridades e metodologias. Agora, tratando-se de SUS, essa autonomia está de certa forma condicionada ao seu regramento maior e os princípios do Sistema. Não é possível, por exemplo, que um município passe a cobrar pelo serviço ou que deixe de atender determinadas pessoas em detrimento de outras. Ou seja, ele tem que respeitar o que diz a lei. De qualquer forma, um prefeito pode decidir não fazer parte do SUS, mas aí ele não poderia contar com as verbas do Estado e da União, e nem se articular com os municípios do seu entorno.

Mas a autonomia não pode desequilibrar o sistema?  A possibilidade de regionalização da administração ajudaria neste sentido?

Há uma previsão dentro do próprio SUS que estabelece mecanismos regionais, de gestão, administração e partilha de serviços. Isso está suposto na lei que criou o Sistema, mencionando a regionalização e a necessidade de constituição de instrumentos regionais. E isso vem sendo feito. Foram dados vários passos para fortalecer estes mecanismos, mas não no sentido de anular a autonomia municipal, mas no sentido de complementar. Hoje, o estado de São Paulo é dividido em regiões e há um colegiado onde municípios e estado decidem prioridades e ações juntos.

Acredita que as secretarias municipais sofrem com a falta de integração com o governo estadual e federal?

Não é uma questão tranquila e retilínea, infelizmente. Muitas vezes é difícil para um gestor estadual ou federal dialogar com municípios em pé de igualdade. Há um entendimento equivocado, às vezes, que há uma proeminência hierárquica sobre os munícipios. O País vem de um histórico anterior em que as relações não tinham a linearidade prevista pela Constituição, portanto ainda há esta tradição. Isso cria, muitas vezes, dificuldades de diálogo e avanço. Agora, é uma construção que temos que realizar juntos, fortalecendo essas instâncias interfederativas colegiadas em todos os âmbitos, para evoluir na relação.

Qual a grande dificuldade que os munícipios costumam enfrentar para oferecer uma assistência em atenção básica de qualidade?

A gestão no município está voltada para ações concretas do atendimento das necessidades da população. É a velha frase: “a pessoa não mora no País, nem no Estado, ela mora no município”, ou seja, ela vai reivindicar o seu direito batendo na porta do prefeito – e bate mesmo – ou na do secretário de Saúde. O gestor local também lida com dificuldades financeiras. Os municípios, hoje, sofrem um afogamento com essa situação de crise. A União e o Estado podem cortar os gastos, mas os municípios não, já que são cobrados de forma direta pela população, pelo Judiciário e opinião pública. Com isso, eles estão extrapolando muito o mínimo de gastos que a constituição preconiza (15% das receitas líquidas), colocando mais de 20% das receitas no setor, por vezes mais do que 30%.

O que o senhor pensa da Estratégia Saúde da Família (ESF)?

Entendo que é uma ferramenta potente para desenvolver e garantir o atendimento das pessoas, além da prevenção da Saúde e o tratamento de doenças que não exigem grande incorporação tecnológica. A experiência que temos com a ESF é muito positiva, inclusive no custo-benefício. O dinheiro que você gasta com uma equipe de profissionais é compensado pela diminuição de complicações posteriores, internações hospitalares e gastos com novas doenças. A carência de profissionais, no entanto, é mais acentuada ainda na ESF. As instituições precisam formar mais médicos, enfermeiros e dentistas que tenham qualidades e habilidades técnicas próprias para este tipo de atividade.

Publicado na Revista da APM – edição 676 – abril 2016