Júlio Renato Lancellotti – Ações que fazem a diferença

O pároco é personagem emblemático em ações que buscam proporcionar uma vida mais digna e segura para as pessoas que vivem diante da extrema pobreza

Entrevistas

Uma das principais figuras da Igreja Católica no Brasil atualmente, o Padre Júlio Renato Lancellotti é personagem emblemático em ações que buscam proporcionar uma vida mais digna e segura para as pessoas que vivem diante da extrema pobreza – já tendo sido condecorado com diversos prêmios em homenagem a este trabalho. Entre muitas outras contribuições à sociedade, trabalhou no Serviço Social de Menores, participou da fundamentação da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo e colaborou na formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Em entrevista exclusiva à Revista da APM, nesta edição especial sobre a população em situação de rua, ele destaca a necessidade de preservar a individualidade desses cidadãos. Confira a seguir.

Como surgiu seu interesse em contribuir e ajudar a população em situação de rua? 

Não foi uma coisa automática. É um compromisso de vida, de muito tempo, que exige muita participação e acompanhamento. Não é uma coisa episódica, mas sim um compromisso que foi se construindo ao longo da minha história e que não teve uma data de início, assim como não deve ter uma data de término. É um compromisso que, simplesmente, se vive.

Que ações poderiam ser pensadas para assegurar a dignidade da população que está na rua? 

A renda básica é importante, porque ela é geradora de autonomia. Para se ter uma ideia, uma pessoa em situação de rua custa para a Prefeitura de São Paulo entre R$ 1.300 e R$ 1.500 por mês. É um valor muito alto para uma resposta muito pífia, conforme o próprio Censo mostra, já que quase metade da população está acolhida, enquanto os outros 50% estão espalhados pela cidade, como nós vemos todos os dias. Então, fazendo uma referência médica, se é receitada uma medicação a um paciente e ela não dá resultado, o que se faz? Muda o medicamento até surtir algum resultado positivo. No caso da Prefeitura, ela não faz isso, tendo sempre a mesma resposta para uma questão muito complexa.

Além disso, precisamos pensar também na questão da locação social. Em São Paulo, as experiências são positivas, demonstrando que este é um caminho muito aceito, consagrado, experimentado e que dá bons resultados. 

Há uma série de passos muito importantes a serem dados em relação a este assunto. Todavia, podemos afirmar que o principal, no momento, é garantir o acesso à moradia para essa população? 

Com certeza sim, é a ideia de moradia em primeiro lugar. Em São Paulo, dizemos que existem mais casas sem gente do que gente sem casa, então a questão do solo urbano é muito complicada na cidade. O povo não quer mais ficar em abrigos e albergues, porque eles são massificantes e, neste momento, a Prefeitura tem uma certa consciência de que isso não resolve a questão. Portanto, o acesso à moradia, com autonomia, é o caminho. A pessoa não vai conseguir ter um trabalho digno ou ingresso a um curso ou à cultura, por exemplo, se não tiver um lugar para dormir, sistema de saneamento básico ao seu alcance e alimentação. Ela não vai ter acesso a uma série de coisas se não tiver o básico, e é a partir daí que devemos começar. O básico é ter onde morar, é ter segurança alimentar e afetiva, é ter o que vestir. As pessoas que estão nas ruas precisam de proteção social e todos os cuidados proporcionados a elas estão interligados. 

Como a área da Saúde pode contribuir para ajudar a população em situação de rua? 

Temos que pensar em maneiras de elaborar ações que sejam preventivas, e não apenas de tratamento. Precisamos pensar no que é necessário fazer para que aqueles indivíduos estejam saudáveis, e não precisem chegar às Unidades Básicas de Saúde apenas quando existe algum problema. Os profissionais envolvidos neste processo com a população em situação de rua, que é extremamente vulnerável, precisam deixar de lado o conceito patologizado, como se aquela determinada maneira em que a pessoa se encontra seja patológica. 

Como garantir que os pacientes que estão na rua tenham a assistência necessária no caso de doenças crônicas, por exemplo? 

Não existe uma integração dos programas de Saúde com os sociais, e isso faz com que as pessoas em situação de rua acabem não sendo vistas em sua totalidade. As ações as dividem parte como problemas da Saúde e parte como problemas de assistência social, sendo que são problemas como um todo. Pessoas em situação de rua que estão hospitalizadas e recebem alta, mas precisam de continuidade de cuidados de Enfermagem, por exemplo, não encontram para onde ir e se tornam parte de um trabalho conjunto de Saúde e Assistência Social. Porém, como atender uma pessoa em situação de rua que seja diabética dependente de insulina e que precisa manter o medicamento refrigerado? Como é que ele vai tomar a medicação de oito em oito horas? Então, percebemos que uma questão que falha muito é a da medicação assistida, e é só através dela que teremos aderência aos tratamentos. 

De que forma a sociedade pode cobrar as autoridades em relação a isso? 

A gente tem que fazer pressão, abrir diálogo e reivindicar. É difícil ter uma receita. É a partir do compromisso e da convivência diária que vão se estabelecendo pautas, pontos e prioridades. Agora é bastante difícil, estamos vivendo um momento de muita diversidade, posições e interesses, mas é uma luta diária, que exige muito discernimento. A população em situação de rua é absolutamente heterogênea, e não podemos ter a mesma resposta para todos. É como se em um ambulatório, independente da patologia, fosse dada a mesma medicação para todos os pacientes. Não dá para tratar todos eles como se fossem a mesma coisa, então precisamos respeitar a sua individualidade.

Pensando a longo prazo, acha que essa situação pode ter uma resolução efetiva algum dia? 

Isso eu não saberia te dizer. Eu penso que vai ser muito difícil, um processo longo e que não tem uma solução automática. Muitas vezes, a visão para a pessoa em situação de rua é de aporofobia – repúdio, ódio ou desprezo por pessoas que vivem em condições de pobreza e miséria –, achando que para o pobre qualquer coisa que for descartada serve, e não é assim. Eu acredito que a Associação Paulista de Medicina, com toda a sua autoridade moral e ética na sociedade, poderia nos ajudar no sentido de ser uma voz que contribui para elucidar a ideia de que Saúde não é só uma questão terapêutica e curativa, mas sim preventiva. Acho que são muitas as nossas lutas, e é claro que não podemos enfrentar todas, mas temos que ser humanos em primeiro lugar – e saber que quem está na rua não é demônio ou anjo, e sim seres humanos complexos, difíceis, com problemas como todos nós. A partir daí, perceber a multiplicidade, densidade e complexidade de cada paciente.