José Medina – “Não adianta entender de remédios sem entender de pessoas”

José Osmar Medina de Abreu Pestana é um dos maiores expoentes da Medicina brasileira, diretor do Hospital do Rim e laureado pela Universidade Harvard

Entrevistas

Por Guilherme Almeida

Natural de Ipaussu, pequena cidade do interior de São Paulo, Medina formou-se adolescente em um curso profissionalizante e a sua primeira atuação profissional foi como torneiro mecânico. Seguindo a vocação de médico, largou o emprego e mudou-se para São Paulo aos 18 anos, onde morou em pensões e trabalhou fabricando parafusos para poder custear os estudos. Ingressou na Escola Paulista de Medicina, foi plantonista do laboratório de Nefrologia da universidade e logo foi convidado a coordenar o programa de transplantes. Abaixo, conta um pouco dessa trajetória, do torneiro mecânico que deixou o interior à maior referência em transplantes do País.

Como crescer no interior e ser torneiro mecânico refletiu na sua atitude como médico?
Quando você tem essa raiz, conhece todas as dificuldades de uma pessoa que quer crescer. Sabe que precisa fazer tudo dentro das limitações que tem. Naquele tempo, havia mais possibilidades, hoje a competição é maior. Eu trabalhava para seguir uma vocação, mas trabalhei com muitos que precisavam sustentar famílias e ajudar as pessoas que ficaram no Nordeste ou no interior. É natural que você comece a entender as necessidades das pessoas. Como médico, em posição de liderança como tenho hoje, você tem dimensão dessas necessidades. Se você não vivenciou isso, é mais difícil enxergar.
Hoje, consigo fazer uma leitura mais precisa do que a pessoa necessita e de como posso satisfazer essa demanda, mesmo sem uma solução. Não é só tratar ou dar o remédio, tem outras coisas que pesam. Quando criei minha família, sempre me preocupei em conscientizar meus filhos, que hoje têm condições melhores do que as que eu tive. Eu falo para o meu filho, médico, que não adianta entender tudo do remédio e da doença, mas não entender de pessoas. Foi um pensamento que adquiri e que exerço hoje. Está muito relacionado ao que vivi trabalhando como torneiro mecânico ou mesmo ajudando os meus pais nas férias. Também tem relação com o meio em que cresci, com a comunidade. O médico da minha cidade, doutor Rafael de Souza, que me inspirou, tinha esse espírito de ver além do tratamento. Quando as pessoas precisavam de conselho, ele era procurado para trocar confidências. Na Medicina, as pessoas falam com você sobre suas intimidades, diferente de outras profissões. Eu vi tudo isso naquele médico.

Hoje, o senhor é referência e recebeu diversos prêmios. Como foi essa trajetória acadêmica e profissional?
Quando me formei, há mais de 30 anos, ser médico era garantia de sucesso. Hoje, é mais difícil. Eu tinha diversas possibilidades abertas: retornar ao interior, ficar em São Paulo, ir a outro estado, ser professor, ir para o exterior etc. Eu pensava em ser médico no interior, como o de minha cidade. No entanto, trabalhei em Nefrologia com o professor Osvaldo Ramos e ele e todos os professores da disciplina eram cientistas desassossegados. Estavam sempre criando e formando outras pessoas. Acabei ficando lá. Dois anos depois de me formar, apareceu a chance de trabalhar com transplantes, praticamente liderando um grupo e acabei me dedicando a isso. Aconteceu assim e hoje me dedico e trabalho bastante por isso. Foi tudo de acordo com o acaso e dando certo. Me formei, fiz residência, fiquei chefe do plantão do Hospital São Paulo e logo comecei a liderar a equipe de transplantes. Fui ao exterior, voltei e continuei nesta área. Na época, havia a chance de aumentar o número de procedimentos e ajudei a criar a legislação, depois auxiliei na criação do Hospital do Rim (HRim). Foi tudo no tempo certo. As coisas foram acontecendo e fui ajudando.

E como foi esse trabalho de estruturação do sistema nacional de transplantes?
Foi um projeto da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). Um grande número de transplantadores do Brasil participou. O médico Agenor Ferraz, que já havia organizado um programa no interior de São Paulo, foi talvez quem liderou o processo com mais intensidade. Basicamente, vimos como funcionavam os modelos do exterior e criamos um no Brasil. Foi estabelecido o sistema nacional, com coordenação em Brasília, e uma central em todos os estados. É um programa justo, com critério muito rigoroso para realizar doações, diagnosticar morte encefálica, alocar os órgãos etc. Gradativamente, foi ganhando a confiança da população. Hoje, todos entendem o que é morte encefálica e nunca há negativa de doações por motivações dogmáticas ou de desconfiança. Isso porque muitas pessoas conhecem alguém que já foi beneficiado por um transplante. Aos poucos, essa cultura vai sendo introduzida na população.

O sistema hoje é um dos destaques do SUS, mas sofre com a falta de reajustes e, eventualmente, de medicamentos. Como enxerga esse equilíbrio e funcionamento?
O sistema é fundamental, sobretudo para quem está em programa crônico de diálise. São cerca de 130 mil pessoas em diálise no Brasil hoje. Esse sistema está bem estruturado, porém sobrecarregado. Para não estourar o programa, precisamos fazer cinco mil transplantes por ano, já que as pessoas só deixam a diálise porque são transplantadas ou morrem. Então, precisamos manter o sistema e estimular os hospitais para que continuem realizando os transplantes. Falei mais especificamente do setor de rim, por conta da diálise, mas todos os transplantes devem ser estimulados.
A remuneração pelo transplante foi corrigida pela última vez há cinco anos e isso causa um déficit, já que a inflação segue crescendo. O que acontece é que temos que buscar recursos extraordinários na Secretaria Estadual de Saúde ou de alguma outra forma para cobrir a diferença. No caso ambulatorial, de acompanhamento pós transplantes, nunca houve reajustes. Isso precisa ser corrigido. No último ano, também faltou medicamento. Não comprometeu a vida de nenhum paciente, mas passaram a distribui-los em espaços maiores de tempo e teve pessoas tomando os remédios de forma inadequada por indisponibilidade. Nos juntamos com pacientes para solicitar uma solução do Governo Federal, que é quem fornece os medicamentos, e conseguimos sucesso. Mas para esse ano há ameaça, não temos garantia de distribuição.

No âmbito da saúde privada, acredita que a obrigatoriedade dos planos de cobrirem todos os transplantes auxiliaria o sistema?
Não vejo sentido de não existir cobertura pelos planos. Essa é uma briga da ABTO há bastante tempo. Não tem motivos para não serem custeados em planos de cobertura integral, já que não são mais procedimentos experimentais. Entendo que implicaria em um custo maior no seguro saúde, mas a frequência é tão baixa que equivaleria a um aumento por pessoa muito pequeno. Esse entendimento das empresas privadas deveria ser corrigido, o que ajudaria a desafogar o sistema público e a envolver mais hospitais com transplantes. E isso afeta somente a remuneração. Independentemente de ter ou não plano de saúde, a fila é a mesma e o funcionamento não se altera.

Os profissionais envolvidos com transplantes hoje são suficientes? É necessário estimular mais pessoas?
Hoje, temos um número suficiente para dobrar a quantidade de transplantes de órgãos que fazemos no Brasil, mas a disparidade geográfica é muito grande. Os procedimentos estão mais concentrados no Sudeste. O Norte não tem, o Centro-Oeste não tem. Ceará e Pernambuco têm bons programas estimulados pelos governos estaduais, com resultados maiores do que esperaríamos. Temos profissionais de idade mais avançada, mas vejo que não teremos problemas quanto a isso. Os hospitais universitários que trabalham com transplantes estão formando muitas pessoas que entrarão no mercado.

Avanços técnicos-científicos poderão mudar o setor de transplante nos próximos anos?
Não vislumbro que teremos um rim artificial pelos próximos 30 anos, ou um órgão feito de uma célula-tronco. Não antevejo isso também para o pulmão ou o fígado. Agora, na questão do pâncreas, hoje já existem bombas de insulina que são implantadas e têm sensores de nível de glicose. Elas vão soltando a insulina de acordo com a glicose, substituindo o pâncreas do jeito que imaginamos que tem que funcionar. E como o transplante exige imunossupressão, que é uma medicação pesada com efeitos colaterais, muitas vezes é mais fácil tomar a insulina. Então, nos próximos anos, essa implantação deve substituir os transplantes de pâncreas. O coração artificial também está evoluindo, com pessoas vivendo há mais de cinco anos com um mecânico. Mas é mais utilizado como ponte, em casos graves em que não há o órgão disponível, até que a doação seja conseguida. Mas como o coração é uma bomba, é possível que no futuro, em menos tempo que outros órgãos, tenhamos a substituição artificial.

Podemos considerar o Brasil como referência mundial no setor de transplantes?
Hoje, a qualidade do transplante feita aqui é a mesma de outros países. Precisamos melhorar se compararmos a quantidade de procedimentos com a que se faz, por exemplo, em Portugal, Espanha ou Estados Unidos. No caso de transplantes de rim, poderíamos fazer de 50 a 60 transplantes por milhão de habitantes por ano, equilibrando o número de pacientes em diálise e trazendo qualidade de vida muito melhor nos outros transplantes.
O problema é que nosso País está em desenvolvimento. Também há diferença em estrutura física, qualificação pessoal e formação dos pacientes, tudo em um patamar um pouco maior em países desenvolvidos. Acredito que todo mundo deva ter a sua casa, esse é o fator principal. A Saúde e a Educação começam, ao meu ver, neste direito de um refúgio. Essa é a grande diferença. É um processo gradativo. Não significa que nos países desenvolvidos seja uma maravilha, mas a maioria das pessoas vive em condições melhores do que a maioria das pessoas daqui. Não é uma questão do programa de transplantes apenas, mas a evolução natural da sociedade inteira.

O senhor mencionou algumas vezes a possibilidade de aumentarmos o número de transplantes. Como fazer isso?
Primeiro, o transplante surge da pessoa em vida se manifestar como doador de órgãos. Quando ela diz isso para família, não precisa deixar nada por escrito, os familiares não esquecem. É uma forma de depois da morte continuar contribuindo com a sociedade. Depois, precisamos corrigir a disparidade geográfica, temos que ter condições de realizar transplantes, pelo menos, em todas as capitais. Isso também tem relação com a questão do País em desenvolvimento. O terceiro fator é manter tudo que já oferecemos, com remuneração apropriada dos programas e distribuição apropriada de medicamentos. Se atuarmos nessas três fases e continuarmos crescendo neste setor como atualmente – entre 10% e 15% ao ano –, em 10 anos alcançaremos o que é feito nos países desenvolvidos, com programas estabelecidos há mais tempo.

Como enxerga a saúde brasileira de modo geral?
O SUS é um milagre. O Brasil tem pouco recursos, mas dá uma cobertura de saúde universal. Tem situações precárias e outras muito boas. Na média, o atendimento não é tão bom quanto poderia ser. Mas se analisarmos em função do recurso financeiro disponível, talvez seja superior à expectativa. Se você andar por todo o País, verá que toda a cidade tem um Programa de Saúde da Família, uma Santa Casa, um médico. Há uma organização de atendimento à saúde que faz parte da organização social, assim como os municípios têm prefeitura, cartório e correios, também possuem hospitais. Não funciona 100%, mas a estrutura está ali e pronta para progredir.
Se você olhar os Estados Unidos, há entre 30 e 40 milhões de pessoas que não têm cobertura de assistência à Saúde. Se um desses cidadãos necessita de tratamento, precisa buscar um hospital filantrópico ou se virar. Aqui, você pode não conseguir o melhor atendimento todas as vezes, mas tem atendimento gratuito no Brasil todo. Na alta complexidade, temos o programa de transplantes e o tratamento de HIV, por exemplo. A assistência básica é bem razoável, com a Estratégia de Saúde da Família, as campanhas de vacinação etc. Os procedimentos de média complexidade é que são mais complicados, como uma cirurgia de hérnia. De qualquer forma, não há um programa de transplante público no mundo maior do que o brasileiro.

Como devolve à sociedade todo o conhecimento que possui, além do trabalho de liderança no HRim?
Me dedico, de maneira complementar à atuação como professor, a ser uma espécie de tutor ou mentor dos alunos que ingressam na Escola Paulista de Medicina pelo sistema cotas. Estimulo os alunos a conhecerem as oportunidades de intercâmbio e as atividades comunitárias. Falo para eles que é necessário trabalhar fora da grade curricular. A graduação é fácil, assim que você entra, acabou o problema. De manhã alguém lhe diz o que fazer, à tarde também, há uma grade a seguir.
O importante é o que você cria e pensa além desses quadradinhos oferecidos. Uso bastante com eles a palavra desassossego, para que não se acomodem no cercado desta grade. Lá, 50% dos alunos chegam ao curso por cotas – racial, social e de deficiência física. Naturalmente, eles têm muitas dificuldades, sobretudo financeira. A EPM está em um bairro muito caro. Se o aluno mora longe, fica complicado chegar. E se mora perto, gasta o equivalente a sustentar a família que mora longe ou no interior. É um desafio grande para o pessoal cotista. Então, toda semana pego os alunos para isso e gosto muito de fazer esse trabalho.

Íntegra da entrevista publicada na Revista da APM 698 – abril 2018