Carlos Alberto Salvatore – Testemunha das Mudanças da Medicina e do Mundo

Corria o ano de 1928 quando Alexander Fleming derrubou, por acidente, o fungo Penicillium notatum em uma cultura de bactérias, descobrindo ali a penicilina – droga que revolucionou a Medicina àquela altura.

Entrevistas

Foi um dos mais marcantes fatos do século XX, que ainda teve acontecimentos como duas guerras mundiais, a Guerra Fria, a criação da internet, a queda do muro de Berlim e o início da corrida espacial, com o homem chegando à Lua.

Agora, imagine ter testemunhado tudo isso. Quem teve o privilégio de ver a humanidade se transformar ao longo destas décadas foi Carlos Alberto Salvatore, figura histórica da Medicina brasileira que, em 19 de abril último, completou incríveis 101 anos. O ginecologista formou-se na quinta turma da Escola Paulista de Medicina (EPM), onde ingressou em 1937. Ainda como sextanista, demonstrou as virtudes acadêmicas em seu primeiro trabalho científico – intitulado “Apendicite Crônica” –, laureado com o prêmio Lemos Torres, destinado às melhores produções dos doutorandos.

Salvatore, como denuncia o nome, é de uma família italiana que se estabeleceu em São Paulo. Seu pai, comerciante, talvez deva ao filho a liberação do exército da Itália. Segundo o ginecologista declarou em entrevista ao O Estado de São Paulo, à época de seu nascimento acontecia a 1a Guerra Mundial e as regras de convocação diziam que quem tivesse quatro filhos estava dispensado do serviço militar. Ele era o quarto.

Salvatore “pai”, chamado Alberto, também marcou a cidade que lhe recebeu, construindo um dos primeiros prédios de São Paulo, na Praça da Sé. Foi por influência paterna também que Carlos Alberto começou a tocar piano – todos os filhos estudavam algum instrumento.

Como nos confidenciou Nilson Roberto de Melo, ex-aluno e atualmente grande amigo do médico, a princípio o piano não era tanto de seu agrado. “Foi algo que ele foi se apaixonando posteriormente.”

Até hoje, quando jantam juntos, Salvatore costuma tocar algumas músicas para Melo. Brinca que sem clinicar e sem realizar cirurgias, precisa manter a habilidade manual. É ao piano que atribui essa aptidão com as mãos. A destreza foi importante para a sua especialidade, consagrando-se como virtuoso cirurgião e um clínico astucioso.

CARREIRA
Ao todo, foram 64 anos dedicados à Medicina – 42 destes dentro do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP). A sua primeira aproximação com a Ginecologia foi ainda no Hospital São Paulo, onde se impressionou com as habilidades técnicas dos professores Sylla Mattos e José Medina. Este último, inclusive, foi o responsável por leva-lo à USP.

Após algum tempo trabalhando no Instituto Butantã, recebeu o convite de Medina para estabelecer no HC uma clínica ginecológica com 70 leitos, inaugurada em 1948. Foi o pontapé inicial de uma longa história na instituição. Posteriormente, submeteu-se aos seguintes concursos públicos: doutoramento, três livres-docências e professor associado, culminando com o cargo de professor titular, função que exerceu até a aposentadoria, em 1987, quando tornou-se professor emérito. Nesse tempo, reestruturou e ampliou serviços. Salvatore foi responsável, ainda, por criar, organizar e chefiar a residência médica de Ginecologia e Obstetrícia, em 1965.

Também permaneceu cerca de cinco anos somados no exterior, entre Reino Unido e Estados Unidos, estudando com bolsas. Todo o conhecimento foi revertido para seus discípulos. Estima-se que sob sua direção formaram-se 11 professores livre-docentes, 21 doutores e 24 mestres. Sempre considerou que o exemplo devia vir de cima, sendo o primeiro a chegar e o último a sair da clínica.

Não à toa, seguiu na clínica privada após a aposentadoria na faculdade. O especialista tem uma produção científica ampla: são mais de 250 trabalhos, dezenas deles em revistas estrangeiras.

Publicou ainda 16 livros, incluindo três Atlas de Cirurgia Ginecológica. No campo da Medicina, destaca-se um álbum de pôsteres artísticos: Foto Arte em Ginecologia, minucioso relatório sobre as atividades da clínica ginecológica do HC/FMUSP, de 1987.

Foi galardoado com várias honrarias, entre as quais a medalha Anchieta e o diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo, outorgadas pela Câmara Municipal de São Paulo. Também é comendado da Ordem do Mérito Republicano da Academia Brasileira de História e fundador da Academia de Medicina de São Paulo, onde ocupa a cadeira no 19. Além disso, foi recebido na Capela Sistina do Vaticano pelo Papa Paulo VI em 1977.

Ainda se dedicou ao associativismo médico, participando de mais de 30 sociedades. Teve destacada participação na diretoria da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo), sendo presidente do V Congresso Mundial da entidade, realizado em São Paulo, em 1987. Também foi diretor Cultural da Associação Paulista de Medicina entre 1988 e 1992.

SENSIBILIDADE ÍMPAR
Se Salvatore teve uma carreira profissional e acadêmica insigne, é possível dizer que a sua forma de enxergar o mundo no âmbito pessoal também é terna. Entre suas máximas e aforismos, diz: “Ser forte para saber quando se é fraco; e ser orgulhoso e inflexível na derrota, mas humilde na vitória”.

Outra notável marca de sua sensibilidade é o livro Sílvia (1996), biografia e homenagem à sua primeira esposa, com quem casou em 1943. A união manteve- se por 53 anos, até o falecimento da mulher. Escreveu, ainda, duas autobiografias: Doctor Salvatore (1992), em inglês, e 62 anos de Medicina (2009), em português, em que relata toda a sua vida pessoal e profissional, destacando a predileção por observar a natureza e o interesse na arte de curar.

Hoje, casado com Lizette Trentin, Salvatore mantém seus hobbies: o piano, as orquídeas e as viagens, algo que sempre fez com muito prazer. E seu trabalho permanece vivo e atemporal, contribuindo muito para o desenvolvimento da Medicina e de gerações de médicos até hoje.

Publicado na Revista da APM – edição 703 – setembro 2018
Fotos: Sogesp/Arquivo Pessoal