SIM-P: uma condição rara que permanece como um desafio na pandemia

As chamadas síndromes inflamatórias associadas à Covid-19 foram recentemente descritas na literatura e constituem um desafio diagnóstico para os pediatras que se deparam com uma síndrome febril aguda em um paciente com sinais de gravidade clínica em meio à pandemia

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Por Marcio Nehab e Lívia Menezes* 

As chamadas síndromes inflamatórias associadas à Covid-19 foram recentemente descritas na literatura e constituem um desafio diagnóstico para os pediatras que se deparam com uma síndrome febril aguda em um paciente com sinais de gravidade clínica em meio à pandemia. Isto porque a Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P), temporalmente associada à Covid-19, surge como uma apresentação clínica incomum de uma doença ainda considerada recém-chegada no cenário mundial.

Crianças e adolescentes de qualquer faixa etária são suscetíveis à infecção pelo SARS-CoV-2. A literatura aponta para o fato de que a hospitalização por Covid-19 nessa faixa etária parece ser incomum (entre 2,5% e 4,1%). E ainda mais rara é a necessidade de tratamento em terapia intensiva. O espectro da apresentação clínica na infância e adolescência é amplo e inclui uma miríade de sinais e sintomas com envolvimento de órgãos e sistemas variados, desde a forma assintomática até uma apresentação muito grave como a SIM-P, que requer hospitalização e cuidados intensivos. À medida que a pandemia progride, um número maior de crianças e adolescentes está sendo infectado. E não sabemos se este crescimento nos casos de Covid-19 nesta faixa etária também acarretará um aumento dos casos de SIM-P em um futuro muito próximo.

O primeiro relato da SIM-P se deu nos Estados Unidos (EUA), em abril de 2020, e depois no Reino Unido, onde surgiram os alertas iniciais sobre a identificação de uma resposta inflamatória sistêmica grave temporalmente associada aos casos de Covid-19. Estes pacientes evoluem com gravidade clínica, elevação de vários marcadores inflamatórios — proteína C reativa (PCR), procalcitonina (PCT), ferritina, D-dímero — e de disfunção miocárdica como pró-peptídeo natriurético tipo-B (proBNP), troponina, CK e CK-MB, que quase sempre necessitam de suporte de terapia intensiva, além de acompanhamento multiprofissional com infectologista, cardiologista e reumatologista.

De forma didática, podemos dividi-las em três grupos com características clínicas por vezes sobrepostas, de tal forma que alguns autores acreditam tratar-se de um espectro clínico diverso de uma mesma doença. No primeiro grupo estão as crianças que apresentam uma síndrome febril aguda associada a alterações laboratoriais com marcadores inflamatórios elevados. No segundo grupo, elas preenchem critérios para a doença de Kawasaki (DK), seja em sua forma clássica ou incompleta. E, no terceiro, elas apresentam uma doença sistêmica cujo acometimento cardiovascular é grave e o choque cardiogênico pode estar presente, além de um amplo espectro de sintomas. A presença de miocardite com ou sem necrose miocárdica já foi publicada em países europeus e nos EUA, com descrições inclusive de dilatações e aneurismas de coronárias.

As manifestações clínicas da SIM-P são semelhantes, portanto, a outras entidades inflamatórias, tais como: DK, choque tóxico por estafilococos e estreptococos, sepse bacteriana, síndrome hematofagocítica linfoproliferativa secundária e síndrome de ativação macrofágica. Pode apresentar-se também como abdome agudo — simulando quadros de apendicite e peritonite —, sempre associada à presença de marcadores inflamatórios elevados.

Portanto, quando devo pensar em SIM-P e quais exames devo solicitar frente à suspeição, seja no ambulatório ou na emergência? Na maioria das vezes, há o relato de contato recente (até quatro semanas) com indivíduo sabidamente infectado por Covid-19. Entretanto, a ausência dessa história não exclui a suspeita diagnóstica, uma vez que o contato pode ter sido com pessoas assintomáticas, que desconheciam seu status infeccioso, ou até mesmo a própria criança pode ter desenvolvido uma forma assintomática/oligossintomática da Covid-19, na época não valorizada como tal, antes dos sinais inflamatórios sistêmicos surgirem.

A criança que apresenta febre persistente (≥3 dias) e está moderada a gravemente doente ou com sinais clínicos de disfunção orgânica (gastrointestinal, respiratória, cardíaca, cutânea ou neurológica) deve ser avaliada imediatamente e levantada a suspeita diagnóstica. Em alguns relatos, há a descrição que um sinal precoce desse evento seria a presença de taquicardia para idade — sem outra explicação aparente como a febre.

Nessa avaliação inicial, deve-se incluir a medição dos sinais vitais, a avaliação da perfusão e a saturação de oxigênio. Deve-se considerar ainda a consulta precoce com os especialistas em doenças infecciosas pediátricas e em Reumatologia, bem como a coordenação do caso junto ao centro pediátrico de referência mais próximo para testes e manejo ideais.

A triagem laboratorial inicial para inflamação sistêmica deve incluir: hemograma com diferencial, análise de urina, avaliação da função renal e hepática, VHS, PCR, ferritina, LDH, albumina, D-dímero, proBNP, IL-6, troponina e fibrinogênio. O diagnóstico requer a identificação de infecção aguda por Covid 19 — com RT-PCR ou exames sorológicos ou antigênicos em laboratórios certificados. Os exames complementares de imagem serão solicitados de acordo com o quadro clínico apresentado.

Descrita inicialmente no Japão, a DK — em sua forma clássica ou incompleta — curiosamente teve um significativo aumento do número de casos desde o início da pandemia por Covid-19. Para o diagnóstico da DK, são necessários critérios clínicos já bem estabelecidos na literatura. A presença de febre por mais de cinco dias e quatro dos seguintes sinais/sintomas — exantema, conjuntivite, alterações orais, edema de mãos ou pés, adenomegalia ≥ 1,5 cm de diâmetro — autorizam o diagnóstico. Na DK incompleta, nem todos os critérios descritos estão presentes, bastando dois ou três deles. A semelhança clínica pode confundir clínicos experientes. Os dados descritos até o momento sugerem que se trata de entidades clínicas distintas: os pacientes com SIM-P são mais velhos, têm resposta inflamatória mais intensa e lesão miocárdica maior que os pacientes com DK.

De acordo com o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) norte- americano, até 1º de outubro foram notificados 1.163 casos de SIM-P e 20 óbitos no país. A maioria dos casos ocorreu em crianças e adolescentes entre 1 e 14 anos, com média de idade de 8 anos. Mais de 75% dos casos relatados ocorreram em crianças que são hispânicas ou latinas (412 casos) ou negras (não hispânicas, 369 casos). E 98% dos casos (1.145) testaram positivo para o SARS CoV-2. Os 2% restantes eram contactantes próximos de alguém com a Covid-19. A maioria das crianças desenvolveu a SIM-P em duas a quatro semanas após a infecção pelo SARS-CoV-2. Um pouco mais da metade (56%) dos casos relatados era do sexo masculino.

No boletim epidemiológico 43 do Ministério da Saúde (MS) – cujos dados referem-se à semana epidemiológica (SE) 41, até 10 de outubro, foram notificados 486 casos da SIM-P temporalmente associada à Covid-19 no Brasil. Vale ressaltar o incremento de 49 casos em relação à SE anterior e o registro de 34 óbitos (letalidade de 7,0%). A maioria dos casos possui evidência laboratorial de infecção recente pelo SARS-CoV-2 (76,1%) e os demais (23,9%) apenas o histórico de contato próximo com caso confirmado para Covid-19. Houve a predominância do sexo masculino (54,3%) e de crianças nas faixas etárias de 0 a 4 anos (40,1%) e de 5 a 9 anos (31,7%). Dentre os óbitos, 58,8% foram nas crianças entre 0 e 4 anos de idade.

Para investigar a real incidência da SIM-P e sua relação com a Covid-19, a Organização Mundial de Saúde (OMS) disponibilizou um registro mundial on-line para que pediatras de todo o mundo pudessem inserir os dados de casos suspeitos. A definição de casos estabelecida pela OMS e posteriormente validada pelo MS e pelas Sociedades Brasileiras de Pediatria, Infectologia, Reumatologia e Cardiologia foi:

1) Crianças e adolescentes de 0 a 19 anos com febre por mais de 3 dias (pelo CDC > 24h).

2) ao menos dois dos seguintes sintomas: (a) conjuntivite não purulenta, erupção cutânea bilateral ou sinais de inflamação mucocutânea (orais, mãos ou pés); (b) hipotensão ou choque; (c) características de disfunção miocárdica, pericardite, valvulite ou anormalidades coronárias — incluindo achados do ecocardiograma ou elevação de Troponina / proBNP; (d) evidência de coagulopatia (por TAP, PTT, d-dímero elevado); (e) problemas gastrointestinais agudos (diarréia, vômito ou dor abdominal).

3) associação com marcadores de inflamação elevados, como VHS, PCR ou procalcitonina.

4) nenhuma outra causa microbiana óbvia de inflamação, incluindo sepse bacteriana, síndromes de choque estafilocócica ou estreptocócica.

5) evidência de Covid-19 (RT-PCR, teste antigênico ou sorologia positiva) ou provável contato com pacientes com Covid-19 no último mês.

Frente à suspeição, o paciente deve ser tratado com medidas de suporte ventilatório, inotrópico e fluidoterapia, sempre que necessário, e agentes anti- inflamatórios como a infusão venosa de gamaglobulina (IVIG) na dose de 1-2g/kg/dia associada à corticoterapia. Casos refratários podem necessitar do uso de outras drogas imunomoduladoras como anti-TNF, anti-IL-1 e anti-IL-6.

Esses pacientes necessitam de acompanhamento com ecocardiograma para identificação precoce de lesão de coronárias, requerendo, assim, terapia anticoagulante com ácido acetilsalicílico. E depois de seguimento ambulatorial.

Destaque para alguns pontos importantes com relação a SIM-P:

1) É uma manifestação pediátrica incomum, embora descrita em diversos países;

2) Atualmente, é uma das condições clínicas em que a sorologia para SARS-CoV- 2 é valorizada para o diagnóstico;

3) Os marcadores inflamatórios devem ser sempre solicitados;

4) O acometimento cardíaco é frequente. Complicações como aneurisma de coronária podem ocorrer, tal qual observado na DK, logo recomenda-se rotineiramente a realização de ecocardiograma;

5) Os sintomas gastrointestinais são mais frequentes nessa forma de apresentação clínica que os tradicionais sintomas respiratórios da Covid-19;

6) Até o desenvolvimento de protocolos mais específicos, as drogas anti-inflamatórias, em especial o corticosteroide e a imunoglobulina, devem ser consideradas;

7) Para o diagnóstico de SIM-P, é necessária a exclusão de outras entidades diagnósticas que podem se manifestar de forma muito semelhante;

8) É importante salientar que, frente a um aumento do número de casos de Covid-19 na população pediátrica, pode vir a ocorrer o aumento também dos casos de SIM-P e, portanto, as unidades de terapia intensiva pediátrica devem estar preparadas para este fato.

Quase oito meses após a primeira descrição da SIM-P na literatura, as perguntas ainda são mais frequentes que as respostas. Temos uma imagem clara dessa nova doença? Ou de apenas parte dela? Quais são suas causa e patogênese? Existem fatores de risco específicos para essa entidade? Como deve ser diagnosticada e tratada? Os critérios diagnósticos precisam de refinamento para captar um espectro ainda maior dessa doença? Existem marcadores que indicam uma evolução clínica tão desfavorável como essa? Quais tratamentos podem evitar a evolução do choque, da falência múltipla de órgão ou dos aneurismas coronarianos?

Conclusões aceleradas podem trazer respostas equivocadas, de tal forma que acreditamos que muitos estudos ainda são necessários para seu completo entendimento e domínio. O desafio imposto pela Covid-19 promete permanecer entre nós no próximo ano, apesar dos muitos avanços conquistados até aqui.