José Luiz Gomes do Amaral
Presidente da Associação Paulista de Medicina
Publicado na edição 733 – agosto de 2022 da Revista da APM
Foto: Laílson Santos
Vivemos, os 210 milhões de brasileiros, em uma comunidade profundamente desigual: a renda de 90% encontra-se abaixo de R$ 3,5 mil mensais, sendo que 70% ganham até dois salários-mínimos por mês, e 38,2%, somente um salário-mínimo (R$ 1.212,00). Pesquisa recente coloca mais de 33 milhões de brasileiros em insegurança alimentar grave. Com tantos assim desfavorecidos, evidencia-se a impossibilidade de manter habitação ou comer.
Pessoas em situação de rua constituem, sob qualquer ângulo que se analise a questão, um imenso problema de Saúde. Não são somente indivíduos que estão apartados do bem-estar físico, mental e social, mas têm risco extremo de adquirir grande número de doenças.
Em março de 2020, estimava-se no País um número total de pessoas em situação de rua acima de 220 mil, 85% com idade entre 18 e 59 anos e cerca de 50% entre 31 e 49 anos. Assistimos um crescimento explosivo, capaz de escandalizar mesmo os mais indiferentes: em São Paulo, em 2012, eram 14 mil; em 2015, 16 mil. E em 2021, foram recenseados mais de 31 mil nesta condição.
Este problema não diz respeito apenas aos que vivem nas ruas, mas atinge toda a sociedade. Há de ser considerado o conjunto de fatores que levaram pessoas previamente integradas no contexto social convencional a irem para a rua e ali permanecerem. A situação de rua é a via final comum dos que se dissociaram do núcleo familiar, perderam o emprego e/ou se tornaram dependentes de drogas lícitas ou ilícitas. Não menos relevante são as razões que dificultam sua reintegração, algumas inerentes ao próprio indivíduo em situação de rua e outras, as mais relevantes, dizem respeito à sociedade que os cerca.
Não se poderá entender pessoas em situação de rua como um conjunto homogêneo. Adultos, crianças, idosos, gestantes, letrados e analfabetos, alguns totalmente desprovidos de qualificação laboral, outros diplomados, usuários de drogas ou não, desempregados e subempregados, recém ou cronicamente situados nesta condição, estas são algumas das características que as diferenciam entre si.
Ao lado de tantas diferenças, não são poucas e nem pequenas as dificuldades que têm em comum. Sem a perspectiva de futuro, vivem o momento, a sobrevivência às variações do clima, toda sorte de violência interpessoal, fome. Não lhes resta tempo para se atentarem aos cuidados com sua saúde física ou tratamento de suas doenças, e menos ainda lhes sobra energia para planejarem a saída desta condição. O objetivo único é sobreviver.
A falta de documentos e endereço fixo reduz as possibilidades de empregabilidade de alguém em situação de rua. Os postos de trabalho são insuficientes mesmo para quem tenha qualificação laboral ou diplomas. Se para estes a discriminação é regra, mais áspero é o caminho dos egressos prisionais, dos mentalmente afetados e dos dependentes de drogas. A higiene pessoal e o estado das roupas provocam repulsa e prejudicam o acolhimento mesmo nos serviços de saúde. Experiências tristes trazem desconfiança de abrigos onde falta segurança, privacidade, respeito aos laços familiares e salubridade.
A gravidade da situação, sua progressão e a complexa interação dos fatores que nos trouxeram até este ponto exigem mobilização de todos os setores da sociedade, em ações coordenadas e sinérgicas em prol de resultados efetivos: mitigar os determinantes de situação de rua, construir ambientes de acolhimento e múltiplas vias de reintegração.
Ainda que pareça impossível, só será impossível se não acreditarmos em nossa capacidade de ação e organização. Ainda que pareça distante, apenas será distante se fecharmos os olhos à tragédia que temos diante de nós e custarmos a reagir. O desafio é gigantesco, mas não temos escolha senão agir. Agora.