Palavra do Presidente – Especialização médica

"Para complementar a renda, médicos ainda não formados especialistas exercem amiúde especialidades sem terem suficiente competência"

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Há muito que o curso de graduação em Medicina deixou de ser terminal, e a especialização se faz fundamental. A residência médica, o modelo de formação especializada hoje adotado no mundo, foi elaborado em 1893, na Johns Hopkins e liderado por William S. Halsted (1852-1922). O sucesso do programa de Halsted fez com que ele se tornasse, em 1927, o padrão adotado pela American Medical Association.

No Brasil, o primeiro programa de residência médica foi o do Instituto de Ortopedia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, iniciado em 1944. Foi seguido, no Rio de Janeiro, em 1948, pelo Hospital dos Servidores e, na década de 1960, reproduzido em muitos hospitais brasileiros.

Até meados de 1970, eram as sociedades de especialidades médicas, coordenadas pela Associação Médica Brasileira (AMB), que definiam os padrões de formação especializada, dos conteúdos programáticos a fiscalização da aplicação dos programas. Os títulos de especialistas assim concedidos eram chancelados pela AMB e suas especialidades.

Em 1977, a residência médica foi reconhecida pelo Decreto no 80.281 e regulamentada, em 1981, pela Lei no 6.932. Em 2011, e promulgado o Decreto no 7.562, que define a Comissão Nacional de Residência Médica e dispõe sobre a regulação de Programas de Residência Médica reconhecidos pelo Ministério da Educação. Criou-se, nestas circunstâncias, uma segunda via de especialização: aquela do Ministério da Educação.

Vale assinalar que o Ministério da Educação oferece bolsas apenas aos programas que credencia diretamente, e determina que a estes residentes seja garantido alojamento e alimentação. Entretanto, o valor fixado pelas bolsas não é suficiente para a subsistência, o que faz muitos dos residentes usarem horários de descanso para trabalho médico. Tem-se aqui situação irregular e grave, na qual médicos não formados especialistas exercem amiúde especialidades sem terem suficiente competência para tanto.

Ao longo das quatro últimas décadas, nota-se, por parte da AMB e suas especialidades médicas, considerável esforço para acompanhar os parâmetros adotados nos países desenvolvidos, buscando fazer com que a duração e o conteúdo de seus programas – bem como a qualidade dá assistência oferecida pelos especialistas brasileiros – não se afastem dos níveis internacionais.

Assim, em muitas especialidades, os títulos de especialistas concedidos pela AMB/Sociedades de Especialidades são mais valorizados que os concedidos pelo Governo. Muitos dos programas credenciados pela AMB/Sociedades de Especialidades são também credenciados pelo Governo e seus participantes beneficiam-se de bolsa, alojamento e alimentação. Vários outros não, o que configura grave falha no sistema.

Não bastassem as falhas apontadas, agora, o Ministério da Educação vem com a nova versão do Programa “Mais Médicos”, permitindo a concessão de títulos de especialistas aos aprovados em exames teóricos, desde que apresentem comprovação de terem exercido a especialidade pretendida por um período correspondente ao dobro do tempo estipulado pelos programas credenciados. Tem-se aqui a dispensa do exercício supervisionado em um programa definido e controlado e a permissão implícita para o exercício de atividade especializada sem supervisão.

Seja pela carência de recursos que permitam ampliar a oferta de bolsas, seja pela premência em trazer mais médicos a prática especializada, ou seja ainda pela impossibilidade de atender os padrões de formação exigidos pelas especialidades (e AMB), a CNRM tem oferecido resistência

em estabelecer os limites mínimos de qualidade definidos pelos primeiros. Resistencia que se faz sentir em entrevista recente do Secretário de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde.

Hoje, há 70.047 vagas autorizadas para os 7.417 programas de residência médica credenciados pelo Ministério da Educação. Considerando que concluem a graduação anualmente no País mais de 41 mil “médicos” e que, em média, um programa de residência médica tem duração de 2 anos e meio (2 a 5 anos), haveria um déficit de mais de 30 mil vagas.

Fato extremamente preocupante e a ociosidade de vagas, a despeito deste déficit flagrante. Isso se explica por fatores como insuficiência dos programas, falta de perspectiva profissional (postos de trabalho dignos) e endividamento (2/3 dos egressos provêm das faculdades de Medicina privadas) no programa de Financiamento Estudantil (FIES).

O problema grave que enfrentamos era anunciado há mais de uma década, quando da eclosão da última onda de expansão de cursos (públicos e privados) de Medicina: não há cenário de prática (serviços de Saúde) nem supervisão para tantos especialistas.

Entendem os políticos de plantão (usuários de instituições de Saúde “de ponta”, financiadas por planos de saúde pagos pelo tesouro público) que seu povo se satisfaria com qualquer

um que lhe seja apresentado como “médico”. Em posição radicalmente contraria, entendem as sociedades médicas que a qualidade da Medicina e fundamental.

Faz-se necessário, para o bem da saúde das pessoas que vivem em nosso País, que o Governo e seus organismos de regulação e sociedades médicas unam esforços para garantir formação solida aos seus médicos especialistas, conferindo legitimidade aos RQEs (Registros de Qualificação de Especialidade) inscritos nos Conselhos Regionais de Medicina.

A formação médica compreende graduação e especialização, em programa definido, docência qualificada, inseridos em cenário de prática abrangente e suficiente, com supervisão continua e presencial de especialistas médicos certificados.

Para o exercício profissional, todo médico tem de demonstrar qualificação profissional. Isto se faz por meio de um processo avaliatório definido e independente.

Em resumo, todo cidadão deveria ter assegurado o direito de ser assistido por médicos com formação completa e qualificada.

José Luiz Gomes do Amaral
Presidente da APM

Publicada na edição 739 – Agosto/Setembro de 2023 da Revista da APM