Palavra do Presidente – O exercício da tolerância

A pandemia ainda tem posto à prova nossa resiliência e capacidade de adaptação

Artigos

José Luiz Gomes do Amaral
Presidente da Associação Paulista de Medicina

Publicado na edição 724 – jan/fev de 2021 da Revista da APM
Foto: Laílson Santos

“Eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo” – frase criada pela escritora inglesa Evelyn Beatrice Hall (sob o pseudônimo de Stephen G. Tallentyre), biógrafa de Voltaire, para resumir o pensamento do filósofo e simbolizar o direito de livre expressão.

Sobretudo em tempos de polarização de ideias e comportamentos, faz-se necessário deixar falar e ouvir. O que vem ao encontro de nossas posições, e também o que nos contraria, deveriam ambos ser
objeto de revisão atenta e, tanto quanto possível, isenta de paixões.

A pandemia criou uma situação na qual quase tudo é aparentemente novo. Um novo vírus, reações individuais e coletivas inusitadas, alto nível de tensão social, enfim, tudo contribui para fragilizar os conceitos pré-existentes e dificultar o julgamento.

A pandemia se apresenta agressiva e complexa, expõe a nossa imensa ignorância, testa-nos a resiliência física e psicológica, impõe-nos desafios éticos inusitados.

Apesar disso, tem-se a sensação de progresso. Aprendeu-se com a pandemia, sim. E muito. Identificou-se o patógeno, decifrou-se seu código genético, deslindou-se tanto da fisiopatologia dessa terrível doença! Foram exploradas incontáveis alternativas terapêuticas e modelos epidemiológicos. Esperança e decepção
têm-se alternado semana a semana.

À medida em que começamos a vislumbrar eventuais soluções, constatamos que o desconhecido se alargou ainda muito mais do que nos parecia ontem.

Abrimos 2021 com as vacinas! Porém, mal chegaram as primeiras delas, vieram as variantes do vírus, ameaçando-nos com a possibilidade de nos fazer recomeçar. Continuamos a correr contra um relógio implacável, cujos ponteiros nos tiram dezenas de vidas a cada hora. Que nos tiram o fôlego dos doentes e dos sobreviventes. Uns em insuficiência respiratória, outros em inadimplência.

A pandemia ainda tem posto à prova nossa resiliência e capacidade de adaptação, testado nossa disposição de conviver bem com a pluralidade de pensamentos e atitudes. Quando abraçar uma hipótese? Quando desistir dela? Como enfrentar o natural constrangimento ao nos vermos
equivocados? Ou refrear o ímpeto de apostar em alternativas que possam vir a se tornar outros equívocos?

Apoiamos-nos na Ciência e, em Ciência não se deve inibir o entusiasmo, mas evitar a paixão. Manter posições serenas e independentes pode ser muito difícil. Difícil, mas não impossível.

Todos têm seus “heróis” e “vilões” particulares e vários destes intrometem-se em assuntos que lhes são distantes. Tendemos a ouvir os “heróis” e a abafar as vozes contrárias. Porém, os “heróis” podem errar, e
seus adversários podem estar corretos.

Não importa como os vejamos, eles influenciam multidões com suas palavras e atitudes. Nós fazemos parte dessas multidões suscetíveis, aparentemente cegas às quase explícitas intenções deste ou daquele líder de opinião. As redes sociais amplificam argumentos, dão-lhes verossimilhança, tanto informando como confundindo, incitando atitudes extremadas.

Igualmente mergulhados neste caldo efervescente, mas atentos ao dever assumido de resolver no melhor interesse da saúde das pessoas, cabe-nos manter olhos, ouvidos e, mais do que nunca, a mente aberta. É tempo de exercitar humildade para reconhecer erros e limites. É tempo de tolerar os erros e excessos dos colegas. Ouvi-los atenta e pacientemente, respeitar quem nos contradiz, buscar entender quais são suas razões, evitar condená-los por intenções ocultas que talvez nunca lhes tenham ocorrido, sermos tolerantes.

Ao longo de nossa formação, aprendemos a acreditar na Ciência, com fervor quase religioso.

Lembremo-nos de que religiões foram, ao longo da história, perseguidas até que incorporadas aos Estados. Depois, foram combatidas novamente. Pontos de vista religiosos não opuseram apenas religiosos, mas líderes políticos, populações e países. A religião foi também usada intencional
e acidentalmente, com as melhores e as piores das intenções.

Ingenuidade a nossa querer que a Ciência passe incólume. Alguns acreditam que a religião nos dá todas as respostas, outros acham que elas serão encontradas pela Ciência. Seja como for, caminhamos
buscando respostas definitivas, mas não sinto que estejam assim tão próximas.