Quando se procura definir a especialidade de Ginecologia e Obstetrícia (G&O), vem à mente, de imediato, que é um ramo da Medicina que lida com a gravidez, o parto, o período do pós-parto (obstetrícia) e, ao mesmo tempo, com a saúde dos sistemas reprodutivos femininos (vagina, útero e ovários) e das mamas (ginecologia). Claro que na prática não existe interface nítida entre a Obstetrícia e a Ginecologia. Existem imbricações múltiplas entre ambas, razão pela qual, mundo afora, se constituem em uma especialidade única.
Historicamente, cabe o registro, até as décadas de setenta e oitenta do século passado, os G&Os tinham fortes vínculos com suas pacientes, exerciam as funções de parteiro e tratavam as doenças próprias das mulheres. Praticamente não existiam áreas de atuação específicas e os especialistas de então se sentiam bem preparados para atender todas as questões trazidas pelas pacientes de então.
Muitas evoluções se fizeram no bojo da nossa especialidade em curto espaço de tempo e as mulheres também mudaram neste período. Nesse sentido, em que pese o conceito expresso do que vem a ser a G&O, dois pontos importantes merecem serem considerados. O primeiro, e provavelmente o mais relevante, é que a nossa especialidade aumentou muito o seu espectro de atuação por uma demanda vinda do processo de hierarquização dos sistemas de saúde e, ao mesmo tempo, por termos sido eleitos por nossas pacientes como seus provedores primários de saúde.
Este alargamento de atribuições aumentou em muito a necessidade de amealharmos conhecimentos além fronteiras de nossa especialidade médica. Assim, nestes últimos tempos, o G&O foi impelido a se capacitar para atender de forma competente e apropriada este requerimento que, até cerca de duas a três décadas atrás, não fazia parte do nosso escopo de atuação. Buscamos novos conhecimentos no seio de outras especialidades para compor o perfil de competências que se exige do G&O destes tempos.
Um segundo ponto relevante, e creio que neste caso não apenas na G&O, é que os novos conhecimentos e as novas técnicas diagnósticas e terapêuticas evoluíram e se sofisticaram de maneira muito rápida em benefício de uma atenção mais competente e segura para as nossas pacientes. Entretanto, exigem especializações com curvas de aprendizado longas, levando a um fenômeno da superespecialização dentro da própria G&O. Hoje, apenas para citar as mais conhecidas áreas de atuação, temos a Medicina materno-fetal, a Endocrinologia reprodutiva e a infertilidade, a Oncologia ginecológica, a Medicina pélvica feminina e cirurgia reconstrutiva (uroginecologia), a Cirurgia laparoscópica avançada, a Ginecologia pediátrica, a do adolescente e a Ginecologia menopáusica e geriátrica, entre outras.
Este imenso cenário de opções de áreas de atuação oferece ao jovem médico em seu final de residência a possibilidade de estender a formação por mais alguns anos. Pode, portanto, direcionar sua carreira profissional, após concluído o seu período de treinamento, para atividades dentro do própria G&O que lhe proporcionem maior probabilidade de êxito profissional, melhor qualidade de vida e remuneração mais digna.
Com essa perspectiva, creio que em futuro breve perderemos as características que nos marcaram ao longo do tempo. Provavelmente nos dividiremos em G&Os generalistas e especialistas. Na Obstetrícia, é provável que se perderá a intensidade do forte vinculo obstetra/paciente das últimas décadas que, tudo faz crer, passará a ter um caráter institucional. O vínculo, provavelmente, se fará com uma determinada equipe ou com a própria maternidade, e não mais com um médico específico. Na Ginecologia teremos, possivelmente, por um lado, médicos dedicados à atenção básica da saúde da mulher e aos cuidados próprios da especialidade e, por outro, ginecologistas com longo tempo de formação que trabalharão em centros superespecializados atendendo pacientes com situações muito específicas que demandem resolução de alta complexidade.
Diante de tudo que se avizinha para a nossa especialidade, a minha expectativa maior, e porque não dizer o meu grande sonho, é que não nos percamos em tecnicismos e continuemos a prover atendimento competente, atencioso, respeitoso e comprometido. De igual maneira, que continuemos a merecer manifestações de reconhecimento e gratidão das nossas pacientes em qualquer situação apresentada e em qualquer momento de suas vidas. Este reconhecimento espero que se mantenha, independentemente do futuro que nos couber e do caminho ou mesmo da área de atuação específica escolhida para se praticar a G&O.
Tenho grande esperança que conseguiremos passar para as gerações mais jovens de especialistas em G&O que devemos nos manter fiéis a essas referências que herdamos dos nossos antigos mestres e que tanto nos orgulham no convívio cotidiano com nossas pacientes. Esta foi a marca registrada de nossa especialidade ao longo do tempo. Deve seguir adiante.
César Eduardo Fernandes, professor titular de Ginecologia da FMABC e presidente da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo)