O Tabatinga, de Olímpia

Foi escrita, ontem à noite, 21h30, 20 de abril de 2020, a última página de um grande livro. Livro da História da Medicina, com as marcantes peculiaridades, fora dos cenários habituais como os grandes centros, de ter se passado numa pequena cidade do interior de São Paulo.

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Foi escrita, ontem à noite, 21h30, 20 de abril de 2020, a última página de um grande livro. Livro da História da Medicina, com as marcantes peculiaridades, fora dos cenários habituais como os grandes centros, de ter se passado numa pequena cidade do interior de São Paulo.

Conheci o “Dr. Nilton” ainda quintanista de Medicina, apresentado por meu saudoso pai, à época Diretor da Santa Casa. Ele, quase um recém-chegado. Passei a frequentar, nos períodos de férias, o hospital, auxiliando-o em cirurgias, acompanhando-o no Ambulatório e na sua já movimentada Clínica.

Lembro-me perfeitamente de, certa madrugada, em um urgência, ele solicitando para a Circulante da Sala, Irmã Suzana, a possibilidade de encontrar uma meia de senhora, nova. A Irmã prontamente disse que tinha uma em casa e ele pediu para alguém ir buscar.

Moravam as Irmãs de Caridade, que trabalhavam na Santa Casa, pertinho. Tinha até acesso pelos fundos. Imaginem quão estupefata ficou a Madre Superiora ao atender a porta àquela hora, com alguém atrás de uma meia! Nós, sem sabermos o que pensar, ficamos intrigados.

Trazida a meia, seguia a cirurgia e, no final, pediu-a. Disse que antevia, desde o início do ato, a necessidade de completar o fechamento com alguma coisa pois não haveria tecido suficiente dada a extensão do trauma. E assim improvisou, até a revisão, um ou dois dias depois. Não possuía o hospital telas cirúrgicas.

O Nilton sempre atuou na vanguarda da Medicina. Desembarcou na “Menina Moça” já com um endoscópio a tiracolo, para os estudos do esôfago, estômago e duodeno. Poucos hospitais dispunham desse equipamento na época.

Estimulou a vinda de especialistas. Eu mesmo, encontrando-o em um Congresso, já residente, fui contagiado pelo seu entusiasmo em fazer crescer a nossa Santa Casa. Até, também entusiasmado, disse-lhe: “A gente pode operar junto, eu te auxilio e você me auxilia”, o que de pronto respondeu: “Rimoli, eu não gosto de auxiliar, eu gosto de operar. Eu vou papar tudo”. Ativo. Talvez, até hiper.

Quando retornei de Ribeirão Preto, instalei-me na sua Clínica, utilizando seu consultório, como também o do Dr. José Carlos Ferraz, para os meus atendimentos. Revezava nos horários em que não atendiam.

Ainda nessa sua busca pelo novo, implantou, entre tantos, bem lá atrás, os suportes nutricionais enterais e parenterais, mais à frente a videocirurgia, estimulou e participou da chegada dos exames complementares de maior definição, que tanto nos ajudam nos diagnósticos e terapêuticas, entre tantos incrementos.

Ousou. Em 1980, realizou o “I Congresso de Cirurgia de Olímpia”. Onde? Na sua própria residência. Trouxe para cá, às suas próprias custas, renomados profissionais, do Rio de Janeiro, São Paulo e Ribeirão Preto, que passaram uma noite de sexta-feira, recepcionados com um maravilhoso jantar, e uma manhã de sábado discutindo os avanços, novas técnicas, novos exames e novos tratamentos, para as doenças do aparelho digestivo, sua paixão maior.

Ao final, um lauto almoço, organizado com todo esmero pela sempre presente e dedicada esposa Marina, tendo como prato de resistência a famosa “Linguiça Cuiabana”, totalmente desconhecida dos “convivas”, que caíram “de queixo”, caprichosamente preparada pelo exímio “chef”, também saudoso, Dr. Geraldo dos Santos.

A Marina, quero também dizer, participou muito da vida médica do Nilton. Levava pacientes em seu carro para tratamento em Rio Preto, Ribeirão Preto. Cuidava da conta na farmácia do Alberto, que manteve por muito tempo para ajuda aos menos favorecidos.

Jamais deixou de atualizar-se. Participante assíduo de Congressos e Cursos de Atualização, ocupou um final de semana do mês, durante anos e anos, para buscar conhecimentos em São Paulo e aplicar nos seus incontáveis pacientes.

Proferia palestras, apresentava trabalhos, muitos deles tive o prazer de participar e até de publicar. Divulgava nosso hospital e nossa cidade. Adorava os colegas do Corpo Clínico. Tinha seriedade em tudo o que fazia.

Tinha gosto pelo ensinar. Estudo continuado. Lia, ao menos, um artigo, um assunto, todas as noites. Muitos estudantes, e muitos médicos, não somente recém-formados, frequentaram o Centro Cirúrgico da Santa Casa aprendendo com o Espanhol. Impulsionou-me bastante a não desistir da bolsa que havia obtido para a França, logo após a perda de meu pai. Foi um grande entusiasta da minha carreira docente, vibrando com as minhas conquistas no Mestrado e no Doutorado, e de tantos outros colegas.

Era muito conhecido no meio médico, não só paulista, mas nacional. Vez por outra, em Congressos da minha especialidade, um perguntava: “E o Martines? Está bem? Operando muito? Manda um abraço para ele”.

Tabatinga transitou, como poucos e com facilidade, pela boa e velha – pena que escassa, quase acabada hoje – escola da verdadeira Cirurgia Geral. Da Gastroenterologia, Urologia, Proctologia, Ginecologia e Obstetrícia, Tórax, Trauma e Oncologia, passando até pela Anestesiologia.

Com conhecimento de Anatomia, destreza, fineza, rapidez e segurança, fazia do ato um passeio, que chegava, quase sempre (claro, todos nós temos nossas complicações, revezes) a um porto seguro. Destemido e intrépido (lembra-se, Carlos Renato?), nunca deixou de dizer também: “Rimolí (com o acento final mesmo, como passou a me chamar), é importante estudar, atualizar, escola boa, residência boa, mas também precisa de sorte. E eu, graças a Deus, Rimolí, também tenho”. Verdade, merecida sorte!

Na política, transitamos juntos. Transitamos em lados opostos. Juntos novamente. Conversando muito, sempre. Nunca inimigos. Ah! Esta velha senhora fervia, flamejava, em suas veias cheias de sangue espanhol. Oratória eloquente! “Esta é a última. Não participo mais”. Uma, duas, sei lá quantas vezes ouvi. E, novamente, ele lá, envolvido com a atraente e insinuante madame. Na última, mesmo e infelizmente, perguntou-me se gravaria um vídeo. O fiz, com enorme prazer. Nele, fiz questão de também destacar sua cultura geral. Era vastíssima.

O lado familiar tocava-o muito. Apegado, acolhedor, agregador, sua casa recebeu vários sobrinhos, que tratava como os queridíssimos filhos, para também estagiarem na Santa Casa. O orgulho e o respeito deles era contagiante, pelo “Tio Nilton” e pela “Tia Marina”. Reciprocamente, orgulhava-se da educação rígida recebida dos pais, de sua mãe ter acolhido em casa professoras, lá em Tabatinga, que não tinham onde morar e para que não fossem embora da cidade. Orgulho das irmãs, do mano mais velho, Gerônimo, o carinhosamente chamado Minho, médico também, já falecido, de formação semelhante, que enveredou-se pelo Norte do Paraná, fixando-se em Jandaia do Sul. Rimolí, dizia, “O Minho opera muito melhor do que eu. Você precisa ver”. Infelizmente não o vi operando, mas tratei dele aqui em Olímpia, trazido pelo Nilton, de moléstia que causa também esta danada intercorrência que o parceiro sofreu.

Ironia do destino, sábado dia 18 de abril, à noite, ainda compartilhamos uma foto. É de um time de veteranos, em que jogavam ele (bom de bola) e também o Dr. Tércio (craque), ortopedista, carioca, que chegou quase junto com ele aqui em Olímpia e ficou poucos anos. Comentamos da morte do Tércio. Ele aduziu: “De embolia pulmonar, após uma cirurgia de próstata”. E completou: “Bons tempos, Rimolí. Pena que não tem retorno.”  Respondi: “Valeu ter vivido. Isso não apaga.” Foi nossa derradeira conversa. Quando que iria imaginar…

Antes mesmo da nossa união, assim que chegaram, foram recepcionados pelos meus sogros e criou-se um forte laço entre eles e toda a família Spegiorin. De amizade, de verdadeiro “Médico da Família”.

Trouxe ao mundo, auxiliado pelo Colega Gilson, nossa única filha, Fernanda. Vibrou como um pai com as conquistas dela, desde o colégio, o ingresso na faculdade, a aprovação na residência e, mais recentemente, a sua ascensão profissional no Hospital de Base, na FAMERP. “Rimolí, um vinho para comemorar”. Era o que tanto apreciava e degustava, com extrema moderação, mas com muito prazer. Encontrasse uma, duas vezes por dia, não deixava de perguntar: “E a Pirulim, está bem ?”.

Como disse no início, escrita a última página, fecha-se o livro. Com um detalhe, escrito com letras douradas e maiúsculas, perpetuando-se no cenário da Medicina, não só olimpiense, como paulista e brasileira.

Os bons livros que vivemos, estão sempre em nossa mente. Os excelentes, não só estão como também os reverberamos, contamos, propagamos. Não se apagam, jamais. Tá aí um deste naipe.

Na Santa Casa Celestial, a mais Santa de todas, certamente, já solicitou ingresso no Corpo Clínico. Soube, há pouco, que foi dispensado da entrevista e da apresentação do Currículo. Inquieto, já assumiu plantões e está apressando o seu Compadre Simão (Dr. José Simão de Carvalho, que o trouxe de Tabapuã) para fazer logo a anestesia. Esperando-o, já paramentados, o Clodô (Dr. Clodoaldo Marins Sarti) e o Gera (Dr. Geraldo). Pertubando-o, pela última derrota do seu São Paulo, o Gustinho (Dr. Agostinho Volpe, amigo do peito) que, claro, está enaltecendo o nosso “Curingão”, né Tinho?

Missão mais que cumprida! Saudades eternas!

Descanse em paz, querido colega, amigo e irmão.

Luiz Fernando Rimoli, angiologista e cirurgião vascular em Olímpia (SP) e Nely Spegiorin Rimoli, dermatologista em Olímpia (SP)

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Dr. Nilton Roberto Martines faleceu, aos 70 anos, no dia 20 de abril de 2020, vítima de uma parada cardiorrespiratória e embolia pulmonar. Nascido em Tabatinga (SP), mudou-se para Olímpia na década de 1970.

Além da Medicina, atuou também na vida pública da cidade, tendo sido vice-prefeito e também duas vezes o vereador mais votado (1989 a 1992; e 1993 a 1996). Casado com Marina Martines, deixou quatro filhos: Fabiana, Andreia, Mariana e Fábio, médico e vice-prefeito de Olímpia.

Foi um dos entrevistados na última edição da Revista da APM, em mar/abr de 2020