Assaf Hadba
Coloproctologista, ex-diretor da Associação Paulista de Medicina, da Associação Médica Brasileira e um dos fundadores da Unimed de Bauru
Publicado na edição 729 – nov/dez de 2021 da Revista da APM
Foto: Arquivo Pessoal
O médico, cuja formação se faz no sofrimento e nas alegrias do enfrentamento constante dos extremos que se agridem, a vida e a morte, acaba se tornando, pelas imposições do seu mistério, um ser diferenciado dentro da sociedade. Pela diferença que o caracteriza, muito dele se exige e, diferentemente das demais pessoas da comunidade, além do trabalho competente e sem folga, dia e noite, a qualquer hora, a ele não se admite qualquer deslize. Contrariando essa determinação moral da sociedade, a de hoje pouco, e a cada dia menos, vem oferecendo merecida recompensa ao trabalho médico, embora sempre dele exigindo mais.
Para a sociedade de ontem, na qual a diferença não só se fazia na competência, mas também na sistemática de atendimento, cuja prevalência era o relacionamento médico-paciente, permitiu a Miguel Couto, com a verdadeira volitiva consciência de todos os médicos da época, afirmar: “A primeira vez que penetro no lar de um cliente o faço como médico, na segunda como amigo e na terceira como conselheiro”.
Mesmo sendo aplicável a outras profissões, a afirmação do grande clínico foi a característica de grande maioria dos médicos, muitas vezes transformados no médico da família, hoje desaparecido, não por força da modernidade e sim pela deletéria perversidade de um sistema de assistência alquímico e de ideologias utópicas e desastrosas. É preciso resgatá-lo.
A formação do médico – cujas condutas escolar e moral são plasmadas por inúmeros cometimentos que lhe despertam os mais profundos sentimentos, avivando-lhe a consciência e tocando-lhe agudamente o coração – deve, antes de tudo, prepará-lo para os assombros e os mistérios da vida e da morte.
Qual profissão imprimiria o impacto, por qualquer outro meio, semelhante ao primeiro encontro nos anatômicos escolares, no qual os cadáveres ou peças dos mesmos, que a morte causou, criam a oportunidade de angariar conhecimentos necessários para a conservação da vida? Que outra profissão impõe choque tão dramático e violento que leva, muitas vezes, a um estado paroxístico de angústia e de piedade tão marcado como essa? Quantas vezes a meditação nos furtou o sono e o nosso estômago repudiou carne.
Se o privilégio de poder restaurar a saúde diferencia-o, é no insucesso que a diferença aumenta, pela exigência que se faz da cura, sem desculpá-lo pelo resultado negativo. Quantos agrônomos, odontólogos, engenheiros ou qualquer outro profissional liberal se viram frente à justiça pelo chamado erro profissional? Pois mesmo sabendo-se que a Medicina é uma profissão de meios e não de resultados, doutrina consagrada na jurisprudência mundial, ainda assim o profissional médico é diferente pelos conflitos éticos, civis e penais, que envolvem com a constância que a nenhum outro profissional acomete.
Este profissional é tão diferente que, quando para a população ser médico é um sacrifício, para ele, médico formado nos embates da luta, da vida contra a morte, constituiu-se um autêntico privilégio. Este privilégio é o mesmo que impulsiona o médico a evitar que os pacientes, sejam eles ricos ou pobres, permaneçam na fila do desespero, como meros portadores do passaporte da esperança apenas para existir, e não para viver.