O Dia do Médico, 18 de outubro, destaca há anos a dedicação, o compromisso, o trabalho e o compromisso social dos profissionais de Medicina. Talvez poucos saibam, mas a escolha do 18 de outubro é uma homenagem ao Dia São Lucas, nosso padroeiro, santo católico, médico, pintor e escritor. Homem manso, humilde e culto, ele escreveu o terceiro evangelho e, com correção e detalhes, descreveu os milagres de cura praticados por Jesus Cristo.
A bem da justiça, não podemos nos esquecer de um grego, Hipócrates, o pai da Medicina, aquele que, na Ilha de Kós, sombreado pela copa de um frondoso plátano e trajando vestes brancas, se deixava rodear por atentos discípulos. A brisa leve e a paisagem marinha de águas azuis e calmas do mar Egeu, limitada por um céu salpicado de amorfas nuvens brancas, criavam o ambiente perfeito para descrever em detalhes os seus postulados e ensinar aos seus seguidores uma Medicina observadora, pouco intervencionista, quase nunca invasiva e limitada à expectação de um desfecho, quase sempre fatal.
Seus alunos, discípulos, reverenciavam-no como a um Deus e ele retribuía com humildade. O médico era mais importante que a Medicina. O contraponto da súplica era a compaixão e o do insucesso era a submissão. Estamos, portanto, muito bem representados por um santo católico e um filósofo, semideus.
“A Medicina, ciência criada pelo médico, às vezes parece querer se distanciar do seu criador”
Até por nosso legado histórico, e ainda mais por nossa intrínseca relação com a saúde e a vida dos cidadãos, é oportuno aproveitar o Dia do Médico não somente para comemorar, e sim para uma ampla reflexão. Somos otimistas, cientes e conscientes das nossas responsabilidades, orgulhosos do nosso trabalho, do nosso conhecimento e do quanto contribuímos para o bem-estar e progresso da humanidade. Por isso devemos comemorar, e muito.
Mas não podemos fechar os olhos a tudo de ruim que está ocorrendo com os médicos e com a Medicina. A vil remuneração, as más condições de trabalho, a ingerência em nossas condutas – com ostensivo desrespeito à nossa autonomia profissional – prejudicam, e muito, o desempenho funcional, com consequente repercussão negativa para o tratamento dos pacientes.
Não bastasse, o total descaso com a formação e a especialização de novos médicos, além da absoluta falta de critérios para a autorização de funcionamento de novas faculdades de Medicina, permitiu que atingíssemos a marca das 300 faculdades, dando-nos o título de campeão na formação de médicos por ano – em quantidade, não em qualidade, destaco com tristeza.
Há mais um sem número de outros ataques à boa formação e ao bom exercício profissional, incluído, neste último, o oportunismo de setores de algumas profissões da área da Saúde quando se outorgam o direito de executar atividades de competência exclusiva do médico.
Tudo isso são pautas para nossas reflexões e discussões. Reflitamos então. Vivemos hoje novos tempos, isso é certo, mas não é certo que vivemos bons tempos. A relação paciente-médico que era simples, pura, primitiva, focada apenas na súplica e na compaixão, hoje se encontra recheada de leis, códigos, advogados, juízes, gestores, máquinas, tecnologias, dinheiro, política, poder etc. Um recheio que afasta médico e paciente na mesma proporção de sua complexidade e tamanho.
O nosso conhecimento, antes registrado em grossos e pesados livros, hoje com a internet, de tão grande e disponível, nos obriga a ser, ou consultar, um especialista para filtra-lo. A comunicação, hoje tão fácil e rápida, permite o exercício da telemedicina, com transferência de imagens, diagnósticos e procedimentos em tempo real. A Medicina, ciência criada pelo médico, às vezes parece querer se distanciar do seu criador.
Esse tempo que estamos vivendo não é o novo tempo, não é o bom ou o mau tempo, esse é o nosso tempo, marcado pelo giro do nosso mundo e não adianta querer mudar o seu ritmo ou o seu rumo. Podemos até construir uma alavanca, mas não poderemos usá-la por falta de um ponto de apoio. Portanto, caros colegas, sob a proteção dos deuses e santos, mudemos a nós mesmos e vivamos o nosso tempo, no nosso mundo. Comemoremos então.
Um feliz Dia do Médico para todos nós.
Everaldo Porto Cunha é professor afiliado da Faculdade de Medicina da Fundação ABC e diretor da 1ª Distrital da APM
Artigo publicado na Revista da APM – edição 693 – outubro 2017