Batalha perdida

Chega o cirurgião, também cansado e com cara de fome, e fala que ela tem que operar, mas não tem sala no centro cirúrgico e também não tem vaga na UTI

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– Eu gostei muito do médico. Ele colocou a mão em mim, me examinou direitinho. Ele falou que eu tenho um tumorzinho benigno que precisar tirar, senão vira maligno. Deus é muito bom, colocou um anjo no meu caminho.

Mas, a filha tenta explicar para Dona Rosa que aquele médico não vai ser o que vai operá-la. Ele não vai poder passar de manhã e à noite para ver se ela está com sede ou com fome, ou se está com dor. “Vai ser outro médico, mas é da mesma equipe”, explica a filha, “e são todos iguais, mãezinha. Todos vão cuidar da senhora”, disse a outra filha.

 – Eu estou com medo. Será que não é doença ruim? O meu doutor, o doutor Miguel não ia me enganar, não é mesmo filha? Ele é tão bonito, né? Pedi para Deus colocar um anjo em minha vida e ele colocou o doutor Miguel.

– Mãezinha, chegou o dia da cirurgia.

– Vamos, eu não quero deixar o doutor Miguel esperando, bradou Dona Rosa.

– Bom dia moça, a minha mãe tem cirurgia.

– Já sei. Pegue a linha amarela.

– Bom dia, moça, a minha mãe vai ser opera…

– Já sei, pegue a linha azul.

– Filha, cadê o doutor Miguel?

– Mãe, não é o doutor Miguel que vai operar a senhora. É o doutor Anderson. Mas ele é a mesma coisa, todos são iguais.

– NNNNNÃO, eu quero o doutor Miguel, ele pegou na minha mão e falou que ia cuidar de mim. Vocês estão mentindo, eu quero ir embora.

– Não, mãezinha, tenha paciência, vai dar tudo certo.

– Moça, a minha mãe tinha cirurgia marcada para hoje com o doutor Miguel, mas ele saiu do plano, agora é o doutor Anderson, como eu faço?

– Deixa eu ver sua guia. A senhora vai ter que ir ao plano para trocar a guia para o doutor Anderson.  

– Mas, a minha mãe nunca consultou com o doutor Anderson. O doutor Miguel já sabia de tudo, e ela confia tanto nele!

– Não tem jeito, são regras do convênio, eu não posso fazer nada. – Filha, estou com fome, em jejum, lembra?

– Tá bom, mãe, vamos comer uma coxinha.

– O que está acontecendo? Cadê o doutor Miguel, eu não ia ser operada? Você está mentindo para mim. “NÃAAAO, mãe”, a filha explodiu. “A senhora não vai ser operada mais hoje. Seja boazinha porque estou nervosa.”

– Moça, por favor, quero trocar a guia da minha mãe para o doutor Anderson. – A senhora pega a linha branca.

– Moça, só preciso trocar de médico, ela tem câncer, tenha compaixão, por favor. – Eu não posso fazer nada. Consulta com o doutor Anderson só para o dia 1 de outubro.

– Mas moça, eu já falei que a minha mãe está com câncer, até lá ela já morreu!

– Eu não posso fazer nada. São regras do convênio.

– Filha, cadê o doutor Miguel?

– Pode deixar, mãe, vou ligar para a Maria do Carmo, secretária do doutor Miguel. Fique tranquila, vamos chegar em casa. Já passou a fome?

– Sim, passou, mas estou meio enjoada.

– Bom dia, Maria do Carmo, tudo bem? O doutor Miguel está atendendo hoje? Será que você pode falar para ele que minha mãe, a Dona Rosa, não foi internada porque falaram que o doutor Miguel não atende mais este convênio. É verdade?

– Sim, é verdade, Sandra. Agora o plano ia pagar por pacote, para toda a equipe um mesmo valor, e cada dia é um médico que passa para ver o paciente. Você sabe, né? O doutor Miguel não gosta deste tipo de contrato, porque ele acha que o paciente é do médico, e não do plano. Então, ele não concordou e teve que sair.

– Mas não tem jeito mesmo, Maria do Carmo? Será que ele não pode operar pelo menos a minha mãe? Ela confia tanto nele!

– Infelizmente não, mas traga a sua mãe aqui agora cedo que o doutor Miguel explica tudo para ela. Pode vir às 11h.

– Como vai, Dona Rosa? A senhora está bonita hoje, hein?!

– Ah, doutor Miguel, eu estou muito triste porque falaram que o senhor não vai mais me operar, é verdade?

– Sim, Dona Rosa, é verdade, mas a equipe do doutor Anderson é muito boa e ele é um ótimo cirurgião, mais novo, com bastante vontade de trabalhar. Fique tranquila, vai dar tudo certo. “NÃAAAO, eu não quero operar com uma equipe, eu quero operar com um médico”, começou a chorar Dona Rosa. A filha Sandra chamou o doutor Miguel de lado.

– Doutor, quanto custaria a cirurgia da minha mãe particular? A gente não é rico, mas se todo mundo ajudar talvez a gente consiga, somos em 6 filhos.

– O problema, Sandra, não são os honorários médicos, estes são fixos, mas ela vai precisar de UTI no pós– operatório, e aí os valores são imprevisíveis, porque precisamos fazer exames diários nela, então eu não tenho condições de te dizer o quanto ficaria. E eu também não gosto de fazer deste jeito, porque a gente fica tolhido de fazer tudo que precisa, pensando no financeiro da família.

Depois de uma semana, o plano manda um e– mail dizendo que a Dona Rosa precisa passar por uma nova perícia para ser autorizada a cirurgia. Sandra tenta ligar e falar com alguém, mas não consegue, tem que ser tudo por e– mail.

Então, ela leva Dona Rosa para nova perícia e o auditor, um tanto carrancudo, pede todos os exames que eles já fizeram, examina– os com certa negligência e diz que vai mandar um e– mail de volta.

– Mas, o senhor não examinar a minha mãe? Ela está com dores na barriga e vomitando.

– Então, a senhora pega uma senha e passa ela com o plantonista do pronto– socorro. Próximo….

O plantonista, um jovem, atende Dona Rosa com carinho, mas também não examina a barriga dela, manda fazer uma tomografia e voltar.

Depois de duas horas, Sandra volta levando a tomo para o plantonista, mas ele se recusa a ver porque está sem laudo. A informam que o médico vai dar o laudo a distância, mas só depois das 6 da tarde.

Dona Rosa começa a ter dores terríveis e a barriga fica inchada e dura. Sandra chama o médico de novo, mas ele está fazendo uma sutura. Dona Rosa está vomitando escuro e uma coisa fétida. Sandra liga do celular para a Maria do Carmo, secretária do doutor Miguel, mas ela fala que o doutor Miguel está proibido de entrar no hospital porque ele foi descredenciado.

Depois das 6 da tarde, vem o laudo da tomografia dizendo tratar– se de um quadro de obstrução intestinal. O plantonista pede avaliação para o cirurgião de plantão, mas ele vai demorar um pouco para chegar. Enquanto isso, Dona Rosa continua com dores e vomitando. Chega o cirurgião, com cara de cansado e de fome, examina a tomo e fala que ela tem que ser operada, mas também não coloca a mão na barriga da Dona Rosa.

– Como assim operada? Minha mãe está aguardando o convênio liberar a cirurgia dela, está com câncer no intestino.

“Eu sei disso, mas agora o tumor dela obstruiu o intestino, e se ela não for operada, vai morrer. Dá para você entender isso?”, fala o cirurgião, um tanto ríspido. “Manda passar uma sonda no nariz dela e internar para o plantonista da noite.”

– Mãezinha, fique calma que a gente vai internar a senhora porque deu um probleminha na barriga, está bem?

– Não, eu quero que você ligue para o doutor Miguel, eu não vou deixar ninguém me cortar se o doutor Miguel não me ver.

O plantonista da noite ainda não chegou, e dizem que ele está operando em outro hospital, porque dizem que agora ele só ganha por pacote. Meu Deus, transformaram os médicos em pacotes. Dona Rosa continua com dor, e suas forças estão se exaurindo, é desesperador…

Enfim, chega o cirurgião, também cansado e com cara de fome, e fala que ela tem que operar, mas não tem sala no centro cirúrgico e também não tem vaga na UTI. E diz que vai ter que fazer avaliação com cardiologista e com anestesista. Pelo menos, acharam um quarto para colocarem a paciente, que já está com menos dor.

Dona Rosa percebe que seu caminho já está traçado, mas ela queria tanto ver as netas crescerem, ela tem certeza que a Leticia, a neta mais velha, vai fazer Medicina. Ela queria tanto ter uma neta médica.

No outro dia, após 36 horas de internação, falam que a do quarto 301 vai subir, quando tiver sala no centro cirúrgico. A espera é angustiante, a filha não larga da mão dela, tenta deixá– la tranquila, porque está muito mal, é uma mistura de tristeza com ansiedade e derrota, para um sistema que é tão desumano.

Vê a mãe saindo do centro cirúrgico e indo para a UTI, mas ela está tão diferente, parece que está inchada, com um tubo na boca, outro no nariz, será que é ela mesmo? Quer falar com o cirurgião que operou, mas ele já foi embora para outro hospital. Vai ter que esperar o cirurgião plantonista chegar.

Pode ver a mãe só no horário de visita, então espera resignada. Sente que perdeu a batalha e tem que aceitar as coisas que agora são assim e não pode fazer nada. Será que no SUS seria pior?

Enfim, consegue falar com o cirurgião da equipe, que diz que a Dona Rosa do 301 teve obstrução intestinal pelo tumor e precisou fazer uma colostomia. Esta palavra foi fundo na filha.

– O senhor quer dizer que minha mãe vai ter que usar bolsinha?

– Sim, isso mesmo. Depois a gente vê se dá para converter.

E foi falar com a família do 302.

Depois de 15 dias de UTI, Dona Rosa falece. Toda deformada, inchada, cheia de hematomas, com escaras. Ela não merecia um final assim, nem os familiares, que contam tudo para o doutor Miguel, que também chora. Concluem juntos que todos, pacientes, familiares e médicos, viraram reféns dos planos de saúde. Onde isso vai dar? Não sei…

Por Maurício Roberto Gazotto

Gastroenterologista e endoscopista

CRM-SP 42.657 | RQE-SP 40.051

Publicada na edição 740 – Outubro/Novembro de 2023 da Revista da APM