A origem da saúde na mitologia greco-romana se dá com Apolo. Filho de Zeus, uma das divindades principais da mitologia, foi o deus mais influente e venerado de todos os da antiguidade clássica. As origens de seu mito são obscuras, mas sua importância era tamanha que é um dos mais citados na Ilíada. Esta, atribuída a Homero, constitui o mais antigo e extenso documento literário grego e ocidental existente. Apolo era descrito como o deus da divina distância, que ameaçava ou protegia desde o alto dos céus, sendo identificado como o sol e a luz da verdade. Fazia os homens conscientes de seus pecados e era o agente de sua purificação ritual. Era o deus da morte súbita, das pragas e das doenças, mas também o da cura e da proteção contra as forças malignas.
De Apolo e da mortal Corônis nasceu Esculápio, ou Asclépio. A lenda conta que ele foi criado pelo Centauro Quíron, que o educou na arte das ervas medicinais e das cirurgias. Aprendeu o poder curativo e se tornou o deus mais apropriado no panteão para os doentes e os desesperados. Acreditava-se que, quando os doentes dormissem, o poder de Esculápio os curaria ou enviaria orientações sobre procedimentos terapêuticos e espirituais. As eventuais mortes eram atribuídas ao fato de os doentes não se terem purificado corretamente ou serem incuráveis. O deus da Medicina teve três filhas: Panaceia, Iaso e Higeia, a mais emblemática.
Higeia era a deusa da saúde, da limpeza e da sanidade. Era associada diretamente com a prevenção das doenças e a continuação de uma vida saudável. A lenda diz que os enfermos, ao procurarem Esculápio, antes de receberem a cura eram recepcionados por Higeia. Ela os levava para um passeio, mostrava a natureza, a floresta, a cachoeira, molhava os pés, limpava os pensamentos, conversava com eles, ouvia suas dores, tudo de uma forma tão carinhosa e tão mágica que acabava por fazer uma limpeza física, mental e emocional. Com isso, muitos se curavam e nem chegavam a ter acesso a Esculápio. Não à toa, as palavras saúde e higiene têm sua origem em Higeia.
No magnífico juramento de Hipócrates, ela tem destaque: “Eu juro por Apolo que cura, por Asclépio, por Higeia e por todos os poderes da cura (…)”. Entretanto, nem mesmo o responsável pelas bases do que viria a ser a Medicina ocidental poderia imaginar o surgimento de um sistema de saúde público como o nosso. Este tem sua origem clara e enraizada na mitologia greco-romana.
Um bilhão e trezentos mil atendimentos básicos em 64 mil unidades ambulatoriais; 1,1 bilhão de procedimentos especializados; 600 milhões de consultas; 11,6 milhões de internações em 5.900 hospitais; 360 milhões de exames laboratoriais; 10 milhões de ultrassons; 1,2 milhão de tomografias; 213 mil ressonâncias; 9 milhões de hemodiálises; 23.400 transplantes de órgãos e tecidos; importantes avanços no desenvolvimento de conhecimentos e tecnologias em áreas críticas; 152 milhões de vacinas; ações de vigilância em saúde; 2.876.430 de profissionais atuantes; etc. Muito prazer, mitologia greco-romana, Sistema Único de Saúde (SUS) – dados de 2022.
Assim como Apolo, o SUS tem o poder protetor, purificador e curador. Sem ele, a saúde da população brasileira não estaria protegida e muito menos purificada e curada. Mais de 190 milhões de pessoas usufruem de toda a dimensão do SUS, e 80% delas dependem exclusivamente dele para qualquer atendimento de saúde. O SUS também é o local mais apropriado para doentes e desesperados. O sono dos pacientes despejado em suas macas, muitas vezes espalhadas pelos corredores por falta de quartos e de estrutura, traz o aconchego e a paz que muitos encontram apenas lá. Qualquer semelhança com o poder de Esculápio não é mera coincidência.
Higeia é a máquina que faz o SUS funcionar: o ser humano. Dentro das obrigações cabíveis e brilhantemente cumpridas por este, o tratamento dos enfermos vai muito além dos medicamentos e das cirurgias. Higeia está em cada um dos colaboradores do SUS: médicos, enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, psicólogos, cirurgiões-dentistas, nutricionistas, higienizadores, entre tantos outros, que são os maiores responsáveis pelo tratamento físico, mental e emocional de cada um que passa por lá.
A Constituição federal de 1988 instituiu o SUS. Universalidade, equidade, integralidade, descentralização, regionalização, hierarquização e participação popular, os seus princípios, objetivos e diretrizes revolucionaram a saúde pública no Brasil. Um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública do mundo fez da saúde um direito de todos os brasileiros.
A rede que compõe o SUS engloba tudo: atenção primária, média e alta complexidades, serviços de urgência e emergência, assistência farmacêutica, atenção hospitalar e ações e serviços das vigilâncias epidemiológica, sanitária e ambiental. A importância do SUS é gigantesca. Vários programas que contribuem para qualificar e humanizar o atendimento foram criados nele: o Programa Saúde da Família (PSF), o Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área da Enfermagem (Profae) e a Rede de Escolas Técnicas do Sistema Único de Saúde (RET-SUS). O Brasil mudou de patamar na saúde pública, os avanços são inegáveis, mas os desafios continuam imensos.
O contínuo desfinanciamento estrutural do SUS dificulta seu pleno funcionamento. O Brasil é o único país do mundo de sistema universal de saúde em que os investimentos privados (55%) superam os públicos (45%), com a agravante que a União vem reduzindo progressivamente sua participação no investimento, onerando sobremaneira os Estados e, principalmente, os municípios.
O desfinanciamento tornou-se ainda mais crítico com os impactos provocados pela aprovação e vigência da Emenda Constitucional (EC) 95 de 2016, intitulada Emenda do Teto de Gastos, que congelava por 20 anos a aplicação mínima em ações e serviços públicos de saúde. Segundo a Associação Brasileira de Economia da Saúde, a perda do investimento na política pública foi de R$ 36,9 bilhões no período de 2018 a 2022. Nos seus 20 anos de vigência, a perda do SUS seria em torno de R$ 400 bilhões, caso fosse considerado um crescimento anual do Produto Interno Bruto (PIB) a 2%.
O novo arcabouço fiscal propõe para a vigência 2024-2027 a restrição do investimento público a 70% da variação real da receita anterior, limitando a 2,5% o crescimento máximo das despesas. Por exemplo, se a arrecadação subir 2%, a despesa poderá aumentar até 1,4%. Na prática, apesar de o novo arcabouço fiscal revogar a EC 95 e apontar um necessário equilíbrio entre a responsabilidade fiscal e a social, o teto de investimento se mantém, porém limitado ao porcentual da Receita Corrente Líquida, mantendo os riscos às tarefas constitucionais do SUS.
Esperamos e precisamos que o Estado nos dê um arcabouço fiscal que faça do SUS e da saúde o que a Constituição nos prevê. Que os nossos deuses de Brasília possam ter a plenitude e o brilhantismo dos deuses da mitologia greco-romana e fazer da saúde um direito de todos.
Por Leandro Freitas Colturato
PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE MEDICINA REGIONAL DE SÃO JOSÉ DO RIO PRETO