BRASÍLIA – Dados inéditos do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), obtidos com exclusividade pelo Estadão, evidenciam os perigos dos jogos de aposta. De acordo com a pasta, mais de um terço (38,6%) dos apostadores enfrentam algum grau de risco ou transtorno relacionado ao vício em jogo.
A pesquisa indica ainda que os adolescentes são o grupo mais vulnerável ao vício: 55,2% dos apostadores na faixa etária entre 14 e 17 anos estão na zona de risco. Com a inserção das apostas online, as chamadas bets, o cenário ficou ainda mais preocupante. Entre os adultos, esse índice cai para 37,7%.
Para definir a exposição ao risco associado aos jogos, a pesquisa considerou a escala Problem Gambling Severity Index (Índice de Severidade do Jogo Patológico, em tradução livre). A escala PGSI serve para classificar os apostadores de acordo com nível de risco a partir de perguntas que fazem um mapeamento do comportamento.
Entre os questionamentos, a escala apura se a pessoa apostou mais do que poderia perder; se, após apostar, voltou para tentar recuperar o dinheiro perdido por meio de outra aposta, se as apostas causaram problemas financeiros; entre outras.
“Embora não envolva o uso de substâncias químicas, como álcool e outras drogas, o comportamento de jogar e apostar pode compartilhar características comuns com os transtornos por uso de substâncias, como perda de controle, tolerância e abstinência”, explica Bárbara Caballero, diretora de Pesquisa, Avaliação e Gestão de Informações da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad) do MJSP ao Estadão.
Os dados estão no Levantamento de Álcool e Drogas (Lenad), feito pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) a pedido da Senad. Pela primeira vez, a pesquisa reúne dados sobre o vício em cigarros eletrônicos, em jogos de apostas (incluindo as chamadas bets) e o uso de medicamentos sem prescrição médica. As estatísticas são preliminares e serão desdobradas em um caderno posterior, que deve ser publicado pela pasta até o meio do ano com recortes mais específicos.
Nesta quarta-feira, 26, o Ministério da Justiça e Segurança Pública lança o Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas, (Obid). O organismo será responsável por reunir informações sobre drogas para embasar políticas públicas na área. O vício em jogos entrou no radar da pasta por apresentar características semelhantes ao que ocorre com a dependência química.
A pesquisa levou em consideração uma amostra de 16 mil pessoas com 14 anos ou mais, classificadas como adolescentes (14 a 17 anos) e adultos (18 ou mais).
Considerando o último ano, 10,5% dos adolescentes dizem que apostaram. O porcentual é de 18,1% entre os adultos. A região do País com maior atividade de apostadores no último ano foi a Sul (20,4% dos apostadores), seguida do Centro-Oeste (18,7%), do Sudeste (17,6%), do Norte (16,5%) e do Nordeste (16,3%).
A pesquisa do MJSP mostra ainda que pessoas com menor renda têm maior probabilidade de fazer uso de risco ou problemático de jogos de aposta. Segundo os dados, a prevalência desse tipo de uso em indivíduos com renda mensal pessoal inferior a um salário mínimo é de 52,8%. Já entre os que recebem um salário mínimo ou mais, o índice é de 21,1%.
Por que adolescentes são mais afetados?
Psiquiatra da infância e adolescência, Gustavo Estanislau explica que a região do córtex pré-frontal no cérebro dos adolescentes é menos madura, o que os torna mais suscetíveis a ter menos controle em relação à compulsão.
“Do ponto de vista neurológico, adolescentes têm um controle inibitório menor, uma capacidade de controlar impulsos menor. E, por outro lado, uma ativação maior das emoções”, explica Estanislau, que é membro do Instituto Ame Sua Mente.
Essas características, segundo o médico, fazem com que esse grupo etário seja mais impulsivo, voltado para o prazer e a emoção. “E isso acaba fazendo com que eles fiquem mais suscetíveis a jogar bastante”, afirma.
Comportamentos perigosos
A partir da escala PGSI, o estudo identificou que, entre os apostadores, considerando tanto adolescentes quanto adultos, 22,4% relataram que quase sempre ou às vezes jogaram novamente para tentar recuperar o dinheiro perdido, um comportamento considerado de risco.
Além disso, 14,8% admitiram que quase sempre ou às vezes apostaram mais do que realmente poderiam perder. E 9,2% informaram ter problemas de saúde, incluindo estresse e ansiedade.
Expansão das bets
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, afirmou que a disseminação das bets preocupa inclusive o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em reunião no Palácio do Planalto no fim do ano passado, o presidente abordou o tema com ministros e pediu que os ministérios, incluindo a Saúde e a Fazenda, agissem para conter o problema.
“(As bets) Não apenas estão prejudicando as pessoas adultas, infelizmente pessoas com menos recursos, mas até adolescentes estão gastando as economias dos pais e dos familiares nesse tipo de apostas”, observou Lewandowski nesta quarta-feira.
A pesquisa do MJSP mostra a expansão das apostas online. As bets ocupam a segunda posição na lista de lugares onde os jogadores fazem apostas, perdendo apenas para loteria. De acordo com os dados, 32,1% dos apostadores jogam nas bets, superando inclusive o jogo do bicho (28,9%).
“Isso nos mostra que a questão das bets vai muito além de uma política de regulamentação de sites de apostas sob o aspecto financeiro, mas envolve também um olhar para a saúde mental“, afirma Bárbara. “Exige uma articulação intersetorial com diversos atores, incluindo políticas de saúde de redução de riscos e danos, similar ao que é trabalhado nas políticas sobre drogas.”
Em 2023, foi sancionada a lei que regulamente as bets no país. Em dezembro de 2024, o governo federal divulgou a lista de bets autorizadas a funcionar no Brasil.
A legalização das apostas esportivas acendeu alerta entre especialistas em relação à dependência dessas plataformas, que vem causando endividamento de brasileiros.
“O processo de legalização de apostas aconteceu sem considerar da maneira mais adequeada os impactos sobre as crianças e adolescentes”, afirma ao Estadão a coordenadora do programa Criança e Consumo do Instituto Alana, Maria Mello.
Publicidade infantil
Maria Mello destaca que um dos problemas que surgiram em decorrência desse processo é a profusão de publicidade destinada ao público mais jovem, ou aquelas que acabam impactando esse grupo por estarem em ambientes que eles frequentam, como jogos de futebol.
“A publicidade dessas apostas no online e offline também virou uma coisa massiva, está em todos os lugares, ela é 360º, e na internet e fora dela. Se a gente pensa nos jogadores de futebol, envolve figuras que são admiradas pelos jovens”, analise Maria Mello, defendendo ainda que haja maior responsabilização das plataformas de redes sociais, onde esses conteúdos são veiculados.
“Essa publicidade precisa ser restringida a ponto de evitar a sua exposição, inclusive em espaços que sejam acessíveis a crianças e adolescentes”, diz.
Como o Estadão também mostrou, adolescentes têm até recorrido a empréstimos com agiotas para arcar com os prejuízos das apostas.
Um relatório de uma comissão de especialistas reunidos pela revista científica The Lancet Public Health, publicado em novembro do ano passado, apontou que 448,7 milhões de adultos em todo o mundo vivem algum risco de jogo.
A especialista orienta que os pais fiquem atentos aos sinais dados pelos filhos e tenham um canal aberto de diálogos sobre o tema.