Na noite da última sexta-feira (8), a Associação Paulista de Medicina realizou mais uma edição on-line do Cine Debate 2022, com transmissão ao vivo pelo canal da APM no YouTube. Desta vez, apresentado por Ezequiel José Gordon, médico psiquiatra com formação em Psicanálise, sobre o longa ‘Depois da chuva’.
O premiado longa japonês, dirigido por Takashi Koizumi, retrata a história de Misawa, um samurai que não consegue encontrar emprego, mas que é um gênio da arte de lutar. Ao lado de sua mulher, ele é obrigado a parar em uma pequena hospedaria por causa de uma enchente.
Vendo as péssimas condições do local, parte em busca de alimento para o povo, logo despertando a desconfiança de sua mulher, que não gosta que ele lute por dinheiro. “A história traz à tona a questão do peso que as opções têm no destino dos indivíduos e como o imprevisto pode ser determinante no curso dos acontecimentos dos mesmos”, destacou o apresentador.
Aspectos Emocionais
A primeira palestrante foi Marina Ramalho Miranda – psicanalista e especialista em saúde mental pela Faculdade de Saúde Pública da USP, membro efetiva e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, mestre e doutora em psicologia clínica pelo Núcleo de Psicanálise da PUC-SP.
“O que muito me motiva nesta reunião é a união de mentes, acredito na tentativa de chegar a uma elaboração conjunta. Não só do filme em si, mas daquilo que ele provocou em cada um de nós, o que podemos apresentar com os sinais de que o diretor nos manda, as mensagens e as comunicações que o filme evoca em nós”, iniciou.
De acordo com a especialista, é possível perceber que as emoções e o estilo do filme, tanto do diretor quanto do roteirista, trazem uma riqueza imensa para o trabalho realizado. “Depois da chuva é um título que nos lança para o futuro, e pesquisando sobre as produções do diretor, percebemos que os filmes trazem um intricamento muito interessante. Quando comecei a assistir, fiquei com vontade de ver outros filmes, e achei muitas coisas em comum, a começar pelos aspectos da natureza junto com a trilha sonora.”
Marina também destacou que as cenas em que a natureza é protagonista – com chuva intensa, as águas caudalosas dos rios e das cachoeiras, o ar que move a névoa, os ventos que balançam as folhas das plantas e as copas das árvores com o papel de conselheiras da floresta – implicam em uma situação de muito movimento no cenário, apresentado de forma sublime e sutil.
“As primeiras cenas me fizeram pensar nos movimentos dos seres humanos em suas eternas buscas, através dos seus barulhos e silêncios. Nada do que está no cenário é por acaso, a escolha dos atores e falas tem uma composição para um sentido que vai sendo construído ao longo da história”, salientou.
Segundo ela, o filme se movimenta e se nutre de múltiplas emoções, articula antagonismos e paradoxos que estão intrínsecos ao ser humano, entre eles honra e desonra, lealdade e traição, sensibilidade e doçura, violência e ato puro, alteridade e egocentrismo, coragem e medo, inveja e admiração e, finalmente, amor e ódio, aprisionamento e alcance da liberdade.
“Durante a experiência de assistir o filme, transitamos entre a lealdade e a falta dela, presente no personagem principal. Por outro lado, também vemos seu lado empático, ao ponto de chegar a romper a ética principal do samurai (não lutar por dinheiro) com o propósito de ajudar as pessoas do local que passavam por uma difícil situação de vida”, finalizou.
Principais reflexões
Em seguida, falou Jeffis Carvalho, jornalista formado pela PUC-SP, roteirista de programas de TV, pesquisador de cinema, consultor de comunicação e colunista no Estado da Arte, plataforma de cultura e ideias do Estadão. Segundo o especialista, o filme é riquíssimo em detalhes e reflexões, uma das diversas características do roteirista do longa, Akira Kurosawa.
“Era um dos únicos que levava valor absoluto para o roteiro, sem filmar uma cena sequer sem o roteiro definido, muito bem elaborado e estabelecido. Por isso, o apuro estético de Akira Kurosawa, o que pode ser consequência da cultura japonesa que, em sua definição, é essencialmente estética”, explicou.
Outro filme de sucesso dirigido pelo roteirista citado por Carvalho é o clássico ‘Os sete samurais’, obra que retrata a vida de um samurai que atende a um pedido de proteção contra bandidos em uma vila japonesa. Ele convida outros seis samurais para ajudá-lo a ensinar às pessoas como se defenderem sozinhas, em troca de comida fornecida pelo povoado da vila.
“Quando assistimos o filme ‘Os sete samurais’, entramos e percebemos as camadas construídas pelo diretor e roteirista. Diante disso, percebemos que a violência não é algo justificável, porém, dependendo das circunstâncias que as pessoas se encontram ou determinada situação, pode ser moralmente justificada”, afirmou o especialista.
“Na altura de sua velhice, o diretor quer nos passar a mensagem de que toda conduta imposta a um samurai, ser rígido, servir e ser legal, quando se encontra diante da miséria, pobreza e necessidade do outro, não tem a menor importância. De 1954 (Os sete samurais) a 1999 (Depois da chuva), passaram-se 44 anos, e neste tempo ele nos mostra que, se em ‘Sete Samurais’ a violência pode ser justificada, em ‘Depois da Chuva’ o código rígido pode ser rompido para fazer o bem”, acrescentou.
O jornalista ressalta que toda obra de Kurosawa é uma reflexão sobre a condição humana permanente e, em ‘Depois da Chuva’, ele traz uma espécie de testamento de sua sabedoria como artista, se tornando influência de muitas obras do cinema mundial. “O autor acreditava que a grande tarefa da arte como cinema é saber contar muito bem a história. O cinema narrativo do Kurosawa é um dos grandes tesouros do século XX, sendo o cineasta japonês o mais famoso no ocidente”, concluiu.
Discussão
Após o término das apresentações iniciais, houve um tempo para debate. Questionada sobre o arrependimento do samurai retratado no decorrer da obra, a psicanalista levantou outro questionamento: Qual arrependimento?
Respondendo, Carvalho disse que todas as ações realizadas pelo samurai eram baseadas em seu manual de conduta e, mesmo sabendo que determinadas atitudes eram tomadas por extrema necessidade, ainda assim se arrependia. “Na maravilhosa cena em que a esposa diz que finalmente entende sua luta e que estava errada em relação a tudo que achava, o samurai cai em si e entende que não precisava se arrepender de nada.”
“À medida em que ele assume a posição de não se subjugar, fica subentendido que ele mudou o caminho a partir de uma travessia, não possuindo mais um status de servidor humilde. Se pensarmos que as águas da chuva vão para o rio e, juntas, vão para o mar, se abrem e se transformam em água salgada, algo que purifica, isso também reflete na vida do personagem após essa travessia”, complementou Marina.
“Gostaria de agradecer a todos os participantes e destacar aos debatedores a somatória e o conhecimento que nos passaram diante desta temática. O empenho de pesquisar e trazer todas essas informações para o público é algo de muito valor”, finalizou Gordon.