No dia 30 de outubro, a Associação Paulista de Medicina apoiou a organização do III Encontro das Academias de Medicina de São Paulo e Sul-Rio-Grandense, com participação das Academias de Medicina do Paraná e de Santa Catarina. Oxigenação extracorpórea por membrana, presente e futuro do transplante pulmonar, doença bipolar, panorama da educação médica brasileira e Fritz Müller foram os temas do evento, realizado de forma virtual.
Paulo Manuel Pêgo Fernandes, diretor Científico da APM e acadêmico da AMSP, iniciou o encontro abordando as indicações e contraindicações da oxigenação extracorpórea por membrana (ECMO). As indicações podem ser divididas nas categorias suporte cardíaco, suporte respiratório e uma combinação dos dois. Com relação às contraindicações, ele pontua: “Não existe contraindicação absoluta ao uso da ECMO, o risco e o benefício do suporte devem ser individualizados para cada paciente e há situações em que seu benefício é questionável, sendo considerada, neste caso uma contraindicação relativa.”
As principais contraindicações relativas são para hemorragia não controlada, neoplasia sem perspectiva de tratamento, disfunção irreversível do sistema nervoso central, falência cardíaca ou respiratória irreversível ou em estágio terminal em pacientes não candidatos a transplante e paciente sem prognóstico. O primeiro caso bem-sucedido de ECMO em neonatos com dificuldade respiratória grave ocorreu em 1975 e marcou a história mundial.
No mundo, há vários tipos de cânulas, como Avalon com função única de drenagem e reinfusão (ainda não disponível no Brasil) e a NovaLung. “No nosso País, podemos fazer um veno arterial periférico para falências cardíacas ou pulmão, veno arterial central para pacientes que precisam de transplante pulmonar e veno venoso periférico, utilizado atualmente em casos de pacientes com Covid-19, quando drena pela aveia femoral”, explica Fernandes.
Suporte cardíaco e respiratório e Covid-19
O ECMO é indicado para choque cardiogênico de insuficiência cardíaca grave nos casos de síndrome coronariana aguda, tempestade elétrica cardíaca refratária e outras medidas, sepse com insuficiência cardíaca profunda, overdoses de drogas/toxidade com depressão cardíaca profunda, miocardite, embolia pulmonar, trauma cardíaco isolado e anafilaxia aguda.
Também é indicado o uso para pós-cadiotomia, pós-transplante cardíaco e cardiomiopatia crônica. “Os protocolos de ECMO no local exigem que seja implantado apenas 20 minutos de PCR com um DEA – o tempo ideal para mudar de PCR convencional para ECPR (ressuscitaçãoo cardiopulmonar extracorpórea)”, enfatiza o especialista.
No suporte respiratório, é indicado em casos de síndrome da insuficiência respiratória aguda, extracorpórea para fornecer repouso pulmonar, transplante de pulmão, hiperinsuflação pulmonar, hemorragia pulmonar ou hemoptise maciça e hérnia diafragmática congênita, aspiração de mecônio.
Outras aplicações de ECMO são para cirurgia traqueal, lavagem pulmonar e ressecção oncológica. Em suas considerações, Paulo Pêgo reitera que é uma terapia de resgate adequada para pacientes com síndrome do desconforto respiratório agudo grave ou outras causas de insuficiência respiratória e/ou cardíaca. “A padronização de condutas é essencial e deve ser rigorosa, precisamos de uma equipe multidisciplinar treinada em UTI para conduzir o seu suporte, com capacitações frequentes.”
A Extracorporeal Life Support Organization (ELSO) é a sociedade internacional que faz as devidas recomendações de ECMO, sendo o Brasil um dos países filiados. Nos registros da organização, atualizados em 15 de outubro, foram 9.771 casos de utilização de ECMO em pacientes com Covid-19 no Brasil – dos quais 48% dos pacientes com a oxigenação extracorpórea morreram. “Acredito que a forma mais correta de se ver esses dados é que 52% sobreviveram, porque, na prática, todos os pacientes indicados a usar ECMO e que não foram colocados, faleceram. Então, mudamos uma mortalidade de 100% para 48%”, explica o cirurgião cardiotorácico.
Ele finaliza que, no Brasil, com as limitações em Saúde, o uso deve ocorrer de forma inteligente, e não a qualquer custo, sob o risco de inviabilizar o processo. “Sobre os pacientes com Covid-19, o processo contínuo ainda é de aprendizagem.”
Transplante de pulmão
A segunda aula, sobre “Transplante de pulmão: presente e futuro”, foi ministrada por José Jesus Camargo, cirurgião torácico e acadêmico da AMRS. Ele informa que a busca de doadores de pulmão é o melhor revelador da má qualidade das UTIs brasileiras, porque exige maior qualificação dessas unidades: “Esse número limitado de aproveitamento de 15% dos pulmões dos pacientes doadores dá uma noção do tamanho da nossa dificuldade”.
Para aumentar o número de transplantes, Camargo diz que tem-se usado os dois pulmões de um doador em dois receptores; preservado ex-vivo, isso aumenta em até 30% o número de transplantes de pulmão, sem aumentar o número de doadores, além de permitir a verificação da funcionalidade do órgão antes de implantá-lo; e o transplante com doadores vivos.
A tendência atual, segundo o especialista, é fazer transplante duplo sempre que possível, exceto em pacientes acima de 65 anos com doença não supurativa e sem hipertensão pulmonar. A fibrose pulmonar idiopática é a doença em que ainda se indica mais transplantes unilaterais. “Também estamos substituindo cada vez mais a circulação extracorpórea por ECMO como suporte perioperatório”, acrescenta.
Em transplantes intervivos, o acadêmico pontua os casos de quadro clínico incompatível com a espera indeterminada por um doador cadavérico, de receptor com caixa torácica compatível com tamanho dos lobos inferiores de adultos, de dois doadores familiares saudáveis e determinados a doar e de doadores com compatibilidade sanguínea (ABO).
Ele ainda informa que países onde a doação de órgãos está acima de 30 doadores por milhão de habitantes por ano optam por não fazer transplante bipolar com doadores vivos. No Brasil, levantamento até junho de 2020 mostra que foram realizados 1.355 transplantes de pulmão, com destaque para Porto Alegre, com 729 transplantes, seguido por São Paulo-Incor, com 422, e São Paulo-Einstein, com 90, e Fortaleza, com 47.
Como tornar as doações mais frequentes? Camargo responde: “A sensibilização da sociedade deve ser contínua, além do papel da mídia, da inclusão no currículo escolar de noções básicas sobre transplante, da inclusão da classe médica no processo de captação de órgãos e da criação de forças-tarefas com estudantes de Medicina para a divulgação de órgãos.”
No Brasil, alguns dos principais desafios para a realização dos transplantes, pontuados pelo especialista, são escassez de doadores, dificuldade de gestão das secretarias estaduais, falta de cultura médica, sobrecarga do sistema público, raros hospitais afeitos ao prejuízo econômico e pouca afeição do médico jovem pela alta complexidade.
O primeiro transplante com doadores vivos foi feito nos Estados Unidos, em 1999. Os estudos envolvendo uso de doadores em parada cardíaca, xenotransplante – a exemplo de um paciente que recebeu rim de porco tratado previamente – e uso de órgãos inertes por manipulação genética são tendências futuras.
Doença bipolar
O painel “A interface Covid-19 e o transtorno bipolar”, conduzido por Flávio Kapczinski, também acadêmico da AMRS, trouxe para o encontro os efeitos de longo prazo relacionados à pandemia, com enfoque para as doenças mentais. “A Covid-19 é uma doença sistêmica associada a inúmeros efeitos residuais de longo prazo, representando 80%, ou seja, a maioria, com uma grande demanda para surdez. Os sintomas neuropsiquiátricos representam 30% dos casos”, diz.
Os sintomas neuropsiquiátricos dos 30% de casos são de curto e longo prazo, as sequelas cerebrais são de longo prazo; de anosmia, déficits cognitivos e de atenção, ansiedade de início recente, depressão, psicose, convulsões e comportamento suicida; sintomas antes, durante e depois da doença respiratória; e dano cerebral independente.
“A Covid-19 não é mais uma afecção do trato respiratório, carrega consigo risco de hemorragia intracraniana substancialmente mais alto, é uma doença que provoca acidente vascular cerebral e doenças nervosas muito diferentes das nossas infecções conhecidas até então, além de neural, problemas de ansiedade, depressão, estresse pós-traumático e conversão para demência”, ressalta Kapczinski.
De acordo com o pesquisador, o SARS-CoV-2 entra no cérebro através dos receptores da enzima conversora de angiostensina 2, das células endoteliais, da inflamação sistêmica e da ativação da micróglia. “Sabemos também que entra no cérebro pela mucosa olfatória, placa cibriforme, trato olfatório, nervo vagal, nervo trigêmeo e via monócitos. Compreender os aspectos celulares e moleculares do dano cerebral por Covid-19 pode direcionar as intervenções para reduzir os sintomas neuropsiquiátricos de longo prazo”, enfatiza.
Ele considera ainda que “as direções futuras devem mitigar os resultados cognitivos, emocionais e comportamentais pós-Covid-19 a longo prazo para diminuir a carga da doença e a neuropatologia pode servir como um modelo para decifrar processos neurodegenerativos relacionados à neuroinflamação em outras doenças cerebrais e desenvolver novas estratégias de tratamento”.
Educação Médica
O “Panorama da educação médica no Brasil”, apresentado por Eugenio Mussak, estudioso da área, traçou um histórico do recente crescimento de instituições no País, bem como os desafios educacionais, subdividindo nos temas: qualidade, currículos, exames de proficiência, Revalida, residência, atualização, temas não médicos e educação a distância.
Registros recentes mostram que o Brasil possui 343 escolas médicas, com uma população de 210 milhões de habitantes, aparecendo em segundo lugar no ranking de instituições médicas no mundo. A Índia, que lidera com 381 instituições, tem uma população de 1 bilhão e 210 milhões de habitantes. Com relação à distribuição aproximada das regiões brasileiras, o Sudeste vem em primeiro, com 145 instituições; em seguida, Nordeste com 80; Sul com 61; Centro-Oeste com 35; e Norte com 31.
“No século 19, eram três escolas médicas – na Bahia, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. No século 20, eram 102 faculdades. Estamos no século 21, já surgiram 238 faculdades de Medicina, surgidas principalmente nos governos Lula e Dilma”, compara Mussak, palestrante convidado da AMPR.
E vem a famosa pergunta, isso é bom ou ruim? “A formação do médico tem sido questionada nos últimos tempos em parte pela proliferação de escolas sem condições e pelas características peculiares das novas gerações. Mas, transferir para esses alunos a responsabilidade pela formação que tem sido fraca é muito confortável para os educadores, para as instituições de ensino e para as autoridades de Saúde do nosso País”, alerta.
Uma alternativa para avaliar a qualidade de ensino de Medicina é o exame de proficiência, sugere o professor, a exemplo do que já acontece em outros países e para o exercício de profissões brasileiras, como a OAB, permeando a discussão inclusive a outras áreas de atuação. “Estamos diante da avaliação da qualidade e quantidade de docentes, se há um número importante de mestres e doutores, se há hospital escola, biblioteca, pesquisa e publicações, laboratórios, ambulatórios e tecnologia da informação”, acrescenta o pesquisador.
Fritz Müller
Para fechar o conjunto de aulas, os acadêmicos Cézar Zillig e Nelson Grisard, da AMSC, sintetizaram a história de Johann Friedrich Theodor Müller, também conhecido como Fritz Müller e Müller-Desterro, que nasceu em 31 de março de 1822, em uma aldeia na Alemanha.
Formado em Filosofia e com curso completo em Medicina, mas não graduado, ficou conhecido nos meios científicos do século 19. “Fritz Müller – O Príncipe dos Observadores, assim o batizou Charles Robert Darwin, por seu exímio trabalho científico de observação e descrição, incluindo seus detalhados e primórdios desenhos”, sintetizou Grisard.
Em uma de suas obras, ele revolucionou toda a ciência natural, transformando-a nos fundamentos da moderna Biologia. “Baseando-se principalmente na observação de seu desenvolvimento embrionário, apurou fatos que corroboram integralmente com os conceitos introduzidos por Darwin”, avalia o acadêmico.
Müller é patrono da cadeira nº 23 da Academia de Medicina de Santa Catarina e doutor honoris causa pos mortem pela Universidade Federal de Santa Catarina. Ele faleceu em Blumenau, em 21 de maio de 1897, aos 75 anos.
Debate
Após as aulas, o terceiro encontro dos acadêmicos contou ainda com debate sobre a educação médica brasileira, conduzido pelos acadêmicos Edmund Chada Baracat (São Paulo), Waldomiro Manfroi (Rio Grande do Sul), Jorge Abi Saab Neto e Roberto Luiz D’Avila (ambos de Santa Catarina) e pelos médicos Gerson Junqueira Junior (Rio Grande do Sul) e Rogério Andrade Mulinari (Paraná).
Prestigiaram as apresentações os acadêmicos José Luiz Gomes do Amaral, também presidente da APM e da Academia de Medicina de São Paulo; Rubens Belfort de Mattos Junior, presidente da Academia Nacional de Medicina; Luiz Lavinsky, Vicente Herculano e Renato Araujo Bonardi.
“Recebi ao longo desta reunião algumas sugestões e perguntas, sobre o nosso próximo encontro. Fui enfático: será presencial. Não vejo a hora de confraternizarmos pessoalmente. A tecnologia nos permitiu nos últimos dois anos a condução de reuniões a distância, com aproveitamento de tantas experiências como hoje abordadas. Foi bom e está sendo muito bom, porém, deverá ficar muito melhor com a próxima reunião presencial”, concluiu Amaral.