Formados em Medicina e Direito, Claudio Barsanti e Mônica Lopez Vazquez acumulam anos de experiência no atendimento a pacientes e na defesa de médicos e outros profissionais da Saúde em demandas judiciais. Barsanti já foi presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP) e atualmente preside a Comissão de Ética Médica do Hospital Santa Marcelina, entre diversos outros cargos que ocupou e ainda ocupa. Mônica, por sua vez, é docente da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa e presidente do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP). Juntos, fundaram e dirigem o escritório Barsanti, Vazquez Advogados e concederam entrevista exclusiva à Revista da APM sobre má prática da Medicina.
O que configura um erro médico?
Torna-se impossível, apenas com a utilização do vocábulo “erro”, determinar se há responsabilidade do agente (médico) quanto ao evento final. O “erro” poderia se apresentar em razão de um simples engano ou devido a um juízo falso de uma determinada situação, ação perfeitamente escusável. Ou, ainda, pela falta, desvio ou desregramento nas ações do profissional que, ao não seguir os passos técnicos e éticos para aquela situação (por imperícia, imprudência ou negligência), contribuiria, de maneira única, para a ocorrência do fim indesejável. Ao acrescentarmos o adjetivo “médico” a expressão formada, “erro médico”, adquire grande complexidade, já que aquele ou aquilo que pode restabelecer o bem-estar biopsicossocial de um indivíduo não obrigatoriamente conseguirá. Desta forma, é fundamental que se diferencie o resultado diverso do desejado – evento indesejado – ou frustração do tratamento no entendimento de “erro médico”.
Como a relação médico-paciente pode ajudar?
Em situações clínicas não raras, devido à alta carga emocional envolvida, os pacientes e seus familiares – não tendo uma visão clara, precisa e exata do que realmente está ocorrendo, podem ter uma avaliação deturpada dos fatos. Uma complicação possível, alguma intercorrência relacionada à doença e ao seu tratamento, ou ainda, uma resposta terapêutica não satisfatória – bem como a evolução natural de uma doença, de forma grave ou agressiva – podem ser entendidos, de forma equivocada, como “erro médico”. Uma boa relação médico-paciente – com atenção e resposta dos médicos a todos os questionamentos e dúvidas dos pacientes e familiares, com a descrição de todos os atos e condutas indicadas e realizadas, em sede de prontuário médico – diminui o risco de desentendimentos e, portanto, abranda a possibilidade de demandas ético- administrativas e jurídicas contra os profissionais de Saúde.
Quais as condutas fundamentais para evitar possíveis erros?
Profissionais que não seguem as regras técnico- ético-médicas que lhes são impostas no exercício da Medicina, ou que não se atualizam frente às novidades científicas que se apresentam e que são necessárias à condução e ao tratamento de seus pacientes, caracterizam a má prática médica – situação que deve ser combalida por todos, indivíduos que se sintam lesados e pelos bons médicos que não podem aceitar que profissão tão nobre seja maculada. Embora possam existir ações dolosas praticadas por médicos, como nos casos de prática de aborto ilegal, a quase totalidade das demandas em que se questiona “erro médico” se relaciona às ações culposas (em que o agente não tem o desígnio de produzir o dano) que possam ter sido praticadas pelos profissionais, por imperícia, imprudência ou negligência.
A negligência caracteriza-se pelo não fazer, o abandono, a falta de ação, a omissão do tratamento. A imprudência consiste na prática de uma ação precipitada, no agir sem cautela, sem o seguimento dos melhores cuidados. Já a imperícia apresenta-se como o desconhecimento técnico, o despreparo. Cristaliza-se na falta de aptidão teórica ou técnica quando de ações ou desempenho da Medicina. Diante dos conceitos, fica claro que o médico deve sempre estar atualizado com os progressos da Medicina, com os avanços relacionados à sua especialidade. Quando há alguma dúvida, discutir o caso clínico com outros colegas, respeitando todos os ditames éticos. Exceção se apresenta nas emergências em que, sendo o único ou o médico mais habilitado na atenção que está sendo prestada, deve intentar todas as medidas que lhe sejam possíveis para salvar a vida, minimizar os danos e diminuir o sofrimento do paciente naquela grave situação.
As acusações de erro médico têm crescido nos últimos anos?
A que considera que isso se deve? Infelizmente, as demandas ético-administrativas e judiciais contrárias aos médicos têm suportado um aumento exponencial nos últimos anos. Não são infrequentes os casos em que os pacientes, “protegidos” pelos escudos dos benefícios da assistência judiciária gratuita ou de uma alegada hipossuficiência do doente em sua relação médico-paciente, logram verdadeiras aventuras jurídicas sem qualquer respaldo, fático ou científico. Somam-se o desconhecimento técnico, no tocante aos assuntos médicos, por alguns advogados ou mesmo alguns maus causídicos que não seguem os ditames éticos de sua profissão e se aproveitam de situações de tristeza e de sofrimento, conduzindo seus clientes em peripécias e demandas sem qualquer lógica ou fundamento. Na Medicina, a grande especialização e, nos dias de hoje, a subespecialização, permitiram o conhecimento de inúmeros detalhes sobre a fisiologia e a fisiopatologia do corpo humano e de suas doenças. Entretanto, alguns profissionais, inadequadamente, dirigiram- -se ao tratamento de sintomas e de órgãos acometidos, esquecendo-se da totalidade e indivisibilidade do ser humano. Isso, associado a outros fatores, têm alterado a relação médico-paciente e conduzido a embates ético-administrativos e jurídicos. Maior publicidade dos casos de “erro médico” também colabora para esse aumento, quando se propaga a possibilidade de ganhos fáceis e de grandes valores.
A pandemia tem contribuído para esse agravamento?
Com todos os fatores relacionados à saúde mental dos pacientes e dos médicos, há um maior risco de desentendimentos entre as partes – o que, por sua vez, aumenta a chance de demandas ético-administrativas e judiciais na área de Saúde. A alta carga emocional vivida por todos os trabalhadores de Saúde, além dos afastamentos por meio de atestados médicos relacionados à pandemia, também pode levar a dificuldades de complementação de escalas. E um menor número de profissionais, somado à alta demanda de pacientes, aumenta o risco de equívocos e, portanto, de questionamentos e ações contrárias. Cabe ainda destacar que os atendimentos por Telemedicina, nos moldes legais autorizados, devem ser realizados por médicos capacitados para esse tipo de atenção, que devem seguir todos os ditames éticos relacionados. Se praticado em inadequadas condições, pode levar a danos irreparáveis a todos os envolvidos.
Quais são as condutas inadequadas mais frequentes na Medicina?
Em nossa experiência profissional, em quase todos os processos médicos em que atuamos existiu uma ruptura da relação médico-paciente. Essa quebra conduz a uma inadequada comunicação entre as partes e as dificuldades havidas entre a expressão e a percepção dos partícipes dessa relação passam a ser o motor das contendas. O médico, ao se mostrar atento, atencioso, sabendo ouvir, respeitando os sentimentos envolvidos e respondendo às dúvidas apresentadas, promoverá, além da Medicina em sua essência, o mais importante fator preventivo contra ações contrárias. Complementa-se que a descrição e o preenchimento adequados do prontuário médico, além de prevenirem ações, também permitem que, mesmo se demandas contrárias forem propostas, que o médico consiga se defender das acusações que lhe forem impostas.
Publicada na edição 730 – jan/fev de 2022 da Revista da APM
Fotos: Arquivo Pessoal