Pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, em colaboração com o Laboratório de Bacteriologia do Instituto Butantan, revelaram mecanismos sofisticados utilizados pela bactéria Leptospira para escapar do sistema imunológico humano, abrindo novas perspectivas para o desenvolvimento de vacinas e terapias. Conhecida como “doença da urina do rato”, a leptospirose representa um grave problema de saúde pública, especialmente em países tropicais como o Brasil. Condições como enchentes recorrentes, saneamento básico deficiente e o clima quente e úmido favorecem a transmissão da bactéria.
Entre os achados mais relevantes, estão proteases (proteínas que atuam como enzimas, quebrando ligações presentes em reações químicas) secretadas por Leptospiras, como a termolisina e a leptolisina, que degradam componentes essenciais do sistema complemento – um conjunto de mais de 40 proteínas do sistema imune responsável por eliminar microrganismos. Essa ação enfraquece o controle da infecção, inclusive dificultando a fagocitose, processo crucial no qual células imunes englobam e destroem patógenos. Além disso, foi demonstrado que a Leptospira sequestra proteínas reguladoras do sistema complemento, como o Fator H, a C4BP (C4b binding protein) e a vitronectina, utilizando-as para dificultar a resposta imune.
Esses mecanismos foram detalhadamente caracterizados em modelos experimentais e clínicos e publicados em revistas científicas, entre eles o artigo que acaba de ser publicado pela Microbes and Infection. O grupo liderado pela pesquisadora Angela Silva Barbosa, do Instituto Butantan, foi responsável pela identificação e caracterização da leptolisina, uma das proteases investigadas. Na USP, o trabalho foi liderado pela professora Lourdes Isaac, do Departamento de Imunologia do ICB. A pesquisa foi financiados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Impactos e potencial terapêutico
Testes realizados em hamsters imunizados com a termolisina demonstraram uma resposta protetora significativa contra a Leptospira patogênica. Está em andamento a avaliação do seu potencial vacinal. “Essas descobertas são passos iniciais para o desenvolvimento de candidatos a vacinas e terapias”, afirma Lourdes Isaac.
Embora vacinas veterinárias estejam disponíveis, ainda não há imunizações eficazes e universais para humanos. Vacinas desenvolvidas em países como Cuba, França, Japão e China atendem apenas variedades locais da bactéria. “A leptospirose é frequentemente confundida com outras doenças, como a dengue, devido à similaridade dos sintomas iniciais, o que dificulta o diagnóstico precoce”, explica a professora.
A maioria dos casos apresenta sintomas leves, mas a doença pode evoluir para formas graves, como insuficiência renal, hepática e pulmonar, além de meningite. Um quadro particularmente preocupante é a síndrome hemorrágica pulmonar associada à leptospirose, que provoca hemorragias nos pulmões e dificuldade respiratória, com uma taxa de mortalidade de aproximadamente 50%.
Próximos passos da pesquisa
O grupo de pesquisa do ICB agora investiga o papel do sistema complemento na resposta inflamatória exacerbada observada nas formas mais graves da doença. Em colaboração com o professor Amaro Duarte Nunes, do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), estão sendo analisados tecidos de pacientes que faleceram devido à síndrome hemorrágica pulmonar associada à leptospirose, com o objetivo de identificar se houve ativação do sistema complemento nesses órgãos.
“Queremos entender se o sistema complemento, além de controlar a infecção, também contribui para a intensa resposta inflamatória observada em quadros graves, como a síndrome hemorrágica pulmonar associada à leptospirose”, explica Lourdes. Esses estudos buscam determinar até que ponto essa ativação piora o quadro clínico e, com base nos resultados, os pesquisadores consideram explorar o uso de inibidores do sistema complemento como uma abordagem terapêutica.
Estima-se que a leptospirose afete mais de 1 milhão de pessoas anualmente em todo o mundo, resultando em cerca de 60 mil mortes. Segundo o Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, entre 2010 e 2020 foram registrados 39.270 casos e 3.419 óbitos no Brasil. A transmissão ocorre principalmente pelo contato com água ou solo contaminados pela urina de animais infectados, os principais vetores da bactéria Leptospira. Bovinos, cães, suínos e gatos também adoecer e transmitir a leptospirose a humanos.
A doença é frequentemente associada a enchentes, que expõem as pessoas ao risco de infecção pela água contaminada. Contudo, alguns grupos ocupacionais também estão em risco, como trabalhadores rurais, médicos veterinários, perfuradores de poços, profissionais de redes de esgoto, funcionários de indústrias de processamento de carne e agricultores que cultivam arroz em áreas alagadiças.
A precariedade de saneamento básico em muitas regiões agrava o cenário, favorecendo a proliferação de roedores e aumentando a exposição das populações mais vulneráveis. Além disso, a capacidade da Leptospira de sobreviver por meses em condições úmidas e quentes reforça a importância de medidas preventivas adequadas, especialmente durante enchentes e alagamentos.
O artigo Proteolytic activity of secreted proteases from pathogenic leptospires and effects on phagocytosis by murine macrophages pode ser acessado neste link.
Fonte: Jornal da USP