As múltiplas camadas da tragédia síria

PARA O PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA ESPM E DA FGV-SP, A GUERRA CIVIL SÍRIA JÁ É A MAIOR TRAGÉDIA POLÍTICA DO SÉCULO 21. ENTRA EM SEU SEXTO ANO COM UM SALDO ESTIMADO DE 400 MIL MORTOS. ALÉM DA CATÁSTROFE HUMANA, O CONFLITO ESCANCARA A INAÇÃO E OS LIMITES DE GOVERNOS, ATIVISTAS E ORGANISMOS INTERNACIONAIS EM ENCAMINHAR UMA SOLUÇÃO NEGOCIADA.

Artigos

Os ingredientes da guerra na Síria misturam disputas por poder político, divisões étnicas e, sobretudo, religiosas, envoltas numa longa história de regimes autoritários. Para complicar, o país se encontra no epicentro de rivalidades geopolíticas mais amplas e de múltiplas camadas.

No plano regional, a Síria é palco do jogo de poder entre Irã, Turquia e Arábia Saudita, potências locais que, cada vez mais, utilizam a religião como meio de projeção política. Os xiitas iranianos aliaram-se ao governo sírio, alauíta – uma vertente do xiismo. Já os turcos e sauditas, ambos adeptos do sunismo, apoiam grupos de oposição a Bashar al-Assad, presidente da Síria, ainda que motivados por interesses distintos.

Globalmente, os sírios veem-se diante de uma queda de braço entre Estados Unidos e Rússia, cada qual com seus aliados regionais e com seus próprios desejos geopolíticos, que trazem à tona os tempos da Guerra Fria. Essa disputa vem inviabilizando qualquer saída multilateral para o conflito, por meio das Nações Unidas.

Mas a guerra civil síria é apenas mais um capítulo de um tragédia muito maior, cujas origens podem ser encontradas pelo menos um século atrás, fruto do colonialismo franco-britânico. As linhas arbitrárias que deram forma ao mapa do Oriente Médio após a Primeira Guerra dividiram os árabes, privaram os curdos de um país próprio e acirraram conflitos sectários.

Mais que isso, as fronteiras estabelecidas artificialmente foram o ambiente propício para a proliferação de experimentos ditatoriais, alguns de contorno socialista, que reprimiram brutalmente minorias étnicas e religiosas e represaram identidades tribais a partir de nacionalismos exacerbados.

Essas “panelas de pressão políticas” sobreviveram lacradas por décadas, até que dois episódios, já no início deste século, levaram o antigo modelo ao colapso. O primeiro foi a invasão norte-americana do Iraque, em 2003. Em vez de tornar o país mais estável, pacífico e livre, a ingerência estrangeira tragou a nação para um confronto prolongado entre uma maioria árabe xiita historicamente alijada do poder, uma minoria árabe sunita que controlava o país desde as origens, e os curdos (também sunitas), ao norte.

O segundo episódio foi a “primavera árabe”, processo em que populações árabes tomaram as ruas contra seus ditadores, tanto no Oriente Médio quanto no norte da África. Na Síria, o temor de que opositores sunitas tomassem o controle do país, na esteira do que estava ocorrendo na vizinhança, levou o ditador Assad a iniciar uma guerra civil brutal, cujos números são assustadores e bem conhecidos.

Enquanto a queda de braço das grandes potências impediu qualquer acordo possível entre governo e oposição na Síria, a catástrofe humanitária aprofundou-se. Um de seus desdobramentos mais visíveis é o número crescente de refugiados e deslocados internos que fugiram das zonas de conflito.

De uma população total de 23 milhões de pessoas, mais de 4,5 milhões já saíram do país, a maioria rumo aos vizinhos Turquia, Líbano e Jordânia. Oito milhões permanecem na Síria, mas fora de suas casas. Na Europa, o país que mais recebeu refugiados foi a Alemanha, que acolheu, oficialmente, 600 mil sírios.

Outro fator crítico na fase atual do conflito é a crescente presença do Estado Islâmico, que desde 2014 vem estendendo seus tentáculos para dentro das fronteiras sírias e hoje ocupa 30% daquele território. De suas bases físicas saem fontes cruciais de financiamento, que vão da venda de petróleo à cobrança de impostos, passando por resgate de sequestros e tráfico humano.

Desde que o grupo iniciou sua campanha de conquista territorial, diversos países lançaram ações militares – nem sempre coordenadas – contra suas principais posições. Dois anos após o início dos bombardeios, os resultados foram decepcionantes. A campanha internacional impôs ao Estado Islâmico algumas derrotas, mas não foi capaz de evitar uma onda de atentados terroristas de enorme repercussão internacional, como em Paris, Bruxelas ou Munique, além de centenas de ataques contra civis nos próprios países árabes.

O quadro de instabilidade generalizada impossibilita um prognóstico claro a respeito da Síria. Sem que haja uma campanha global contra o fundamentalismo islâmico, que ataque não somente os sintomas, mas também as causas profundas – como a islamofobia e a marginalização dos cidadãos muçulmanos dentro das suas próprias sociedades –, a região continuará convulsionando no futuro. Pelo que vem acontecendo nos EUA e na Europa, o caminho ainda promete ser muito longo.

GUILHERME CASARÕES é doutor em Ciência Política pela USP
Artigo publicado na Revista da APM – ed 685 – jan/fev 2017