A essência e a aparência

Somos homens livres para pensar e expressar nossos pensamentos, ideias e opiniões. Somos homens de bem, amistosos no debate, respeitosos com o contraditório, corajosos na defesa de nossas convicções, discretos no apontamento dos erros alheios e humildes no reconhecimento das nossas falhas.

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Somos homens livres para pensar e expressar nossos pensamentos, ideias e opiniões. Somos homens de bem, amistosos no debate, respeitosos com o contraditório, corajosos na defesa de nossas convicções, discretos no apontamento dos erros alheios e humildes no reconhecimento das nossas falhas.

Aprendemos com os filhos, com os jovens e com aqueles a quem ensinamos que as opiniões devem ser respeitadas sempre, que a dialética traz a luz, e aprendemos também que o conceito deve anteceder o diálogo.

Se formos incumbidos de ajudar Noé na escolha dos animais para entrada na arca e iniciarmos uma discussão sobre girafa, devemos, todos, ter em mente que falamos de girafa, um animal de cor amarela, com manchas pardas distribuídas pelo corpo, alto, esguio, de pescoço comprido, pernas longas e com cabeça e boca pequenas, pastando livremente numa savana africana.

Se algum de nós opinar que a girafa é um animal de cor marrom, baixo, gordo, de pernas curtas, quase sem pescoço e com cabeça e boca grandes, mergulhado num lago, certamente estará falando de um hipopótamo.

As opiniões devem ser livres e respeitadas, mas devem ficar no campo das opiniões. Podemos opinar que a girafa é feia, que o hipopótamo é bonito, mas não podemos opinar que a girafa é um hipopótamo. Girafa é girafa e hipopótamo é hipopótamo, esta é a ideia.

É certo que vivemos uma evolução e uma complexidade social muito grandes, a ponto de, às vezes, sentirmos falta de um idioma mais rico, que nos permita expor com mais detalhes e mais clareza os nossos pensamentos.

Ao mesmo tempo, lemos e ouvimos narrativas tão complexas que nos deixam em dúvida, ou até com a certeza de que “o ato é menos importante que o fato”, que “os fins justificam os meios”, que “andamos devagar porque temos pressa” e até que “um hipopótamo é uma girafa”.

É a emoção sobre a razão. É a confusão. É a mentira contada a partir de um fragmento de verdade. É a pósverdade. Muito véu na escrita e muita fumaça na interpretação.

Perderam a essência, e se as pessoas e as coisas perdem a essência, deixam de sê las. Um padre que não pratica a oração e o perdão não é um padre, apesar do uso da batina; um militar que não pratica a hierarquia e a disciplina não é um militar, mesmo se trajando a farda; um médico que não pratica a ética e a compaixão não é um médico, mesmo se estiver vestindo branco; um julgador que não pratica a impessoalidade e a imparcialidade não é um juiz, mesmo que esteja usando a toga.

Precisamos resgatar a essência para estabelecer conceitos verdadeiros e claros e, depois, colocá-los numa prateleira, não num baú. Desta forma, estaremos aptos ao diálogo sobre girafa, hipopótamo ou qualquer outro bicho. Lembrando sempre que quando decidirmos sobre a entrada de outro bicho na arca, não devemos nos guiar por nossas opiniões, afinal somos juízes e por isso devemos ser impessoais e imparciais. Deixem cair o véu e soprem a fumaça.

Everaldo Porto Cunha (CRM/SP 35.824) é ginecologista e obstetra e Paulo Tadeu Falanghe (CRM/SP 31.868) é pediatra e médico do trabalho.

“Se a aparência e a essência das coisas coincidissem, a Ciência seria desnecessária”
Karl Marx

“A finalidade da arte é dar corpo à essência secreta das coisas, e não copiar suas aparências”
Aristóteles

Artigo publicado na edição 711 da Revista da APM – Junho/2019.