Por que algumas pessoas evoluem para a dengue grave e outras, não? Pesquisadora dos EUA responde

A cientista indiana Anuja Mathew, imunologista celular do Instituto Nacional de Saúde (NIH), dos EUA, estudou respostas imunológicas ao vírus da dengue por mais de duas décadas

O que diz a mídia

A imunologista celular e pesquisadora indiana Anuja Mathew chegou ao Brasil em um momento único, quando o País viu uma antecipação da transmissão da dengue e um aumento explosivo de casos – atualmente, são mais de 1,9 milhão de pessoas com suspeita da doença, ou seja, é a maior epidemia de dengue que já vivemos. Durante as mais de duas décadas na academia, ela estudou principalmente as respostas imunológicas ao vírus causador da doença. “Estou no lugar certo e na hora certa”, disse, em entrevista ao Estadão.

De acordo com Anuja, a alta de casos não é um fenômeno exclusivo do Brasil. “As razões não estão muito claras, mas parte dos motivos tem a ver com o aumento das temperaturas e da pressão climática”.

A imunologista faz parte do programa de intercâmbio científico do governo norte-americano, o Embassy Science Fellows Program, e atua no Instituto Butantan, em São Paulo, que buscava alguém com expertise em vacinas. A ideia do programa é alavancar e compartilhar os conhecimentos dos Estados Unidos em tecnologia e saúde.

Anuja é revisora científica do Setor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (NIAID), que faz parte do Instituto Nacional de Saúde (NIH), a principal agência de fomento à pesquisa nos EUA. Além da pesquisa, uma das funções do NIAID é atuar na preparação para futuras epidemias e pandemias.

A missão da pesquisadora é não só compartilhar conhecimentos como também buscar colaborações. Conforme conta Anuja, o Butantan e o NIH têm uma relação de ao menos 20 anos para o desenvolvimento da tão esperada vacina de dose única contra a dengue. “Tem sido um relacionamento muito longo e produtivo. Parte do objetivo de meu intercâmbio é continuar a fortalecer esse laço e talvez encontrar novas vias para colaboração.”

Ao Estadão, ela fala sobre a dificuldade do desenvolvimento de vacinas e um tratamento específico para a doença. “Para a dengue é quatro vezes mais difícil.” Ainda explica por que algumas pessoas desenvolvem quadros mais graves e outras, não. Além disso, aborda o futuro das vacinas em geral e as lições que aprendemos – e deixamos de aprender – com a pandemia dacovid-19.

Confira a entrevista:

Sua pesquisa acadêmica explorou a relação entre os vírus da dengue e o sistema imunológico humano. Ao longo dos anos, qual descoberta chamou mais a sua atenção?

Que a dengue é uma doença complicada e pode ser causada por quatro sorotipos. Quando você estuda uma vacina, você pensa em um agente. Mas a dengue pode ser causada por um ou quatro vírus muito similares. O desafio é que, quando você começa na pesquisa, pensa nas coisas de forma muito unidirecional. Você tem uma pergunta e vai buscar uma resposta para chegar a um resultado. Mas, para a dengue, é muito amplo, muito complicado.

Ainda não temos um tratamento específico para a dengue. Estamos perto de mudar essa realidade?

Houve muitas tentativas, mas elas não tiveram muito sucesso. Alguns (possíveis tratamentos) estão em ensaios clínicos agora. Por exemplo, há um medicamento da (farmacêutica) Janssen que foca em uma proteína específica do vírus da dengue, chamada NS 4B, e está se mostrando promissor, mas ainda precisa passar por múltiplos ensaios.

Outras tentativas incluíram testar medicamentos que são usados para outras infecções virais. A maioria não mostra uma grande diminuição na febre em um modelo animal ou uma diminuição da viremia, que é a presença do vírus no sangue. Todos os medicamentos testados até o momento não se mostraram promissores.

Acho que as melhores esperanças realmente são o controle do vetor, ou seja, garantir que não haja água parada na sua casa, e, é claro, o mais importante, o desenvolvimento de vacinas. Mas não enxergo uma nova terapia nos próximos dois a três anos.

Parte do desafio com a dengue tem a ver com os quatro sorotipos. Também sabemos que, por exemplo, a dengue 3 no Sudeste Asiático causa doenças mais graves. Então, você deve considerar que existem diferentes vírus circulando, cada um deles com mais ou menos virulência e, em seguida, tentar usar um medicamento para tratar todos. Para a dengue, portanto, é quatro vezes mais complicado.

E, na verdade, é ainda mais complicado porque existem tantos outros arbovírus (vírus transmitidos por artrópodes, como mosquitos) relacionados, como zika, febre amarela, chikungunya etc. Todos são muito semelhantes, e estão circulando constantemente em países como o Brasil. Portanto, você também deve considerar isso ao pensar na dengue.

Em uma segunda infecção por dengue, o risco de doença grave aumenta significativamente. Quais mecanismos impulsionam esse fenômeno?

Existem muitos fatores de risco para o desenvolvimento de quadros graves. Um deles é a cepa viral. Certos sorotipos ou genótipos do vírus são conhecidos por serem mais ou menos virulentos. Outro mecanismo tem relação com o hospedeiro. Por exemplo, alguns genes inatos são conhecidos por estarem associados à dengue mais grave ou menos grave. Outros pontos importantes a considerar são fatores nutricionais e, realmente, as respostas imunes (de cada pessoa).

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É bem difundido que em uma segunda infecção, e isso foi comprovado epidemiologicamente, o risco de ter uma doença mais grave é muito maior. Se você pegar, por exemplo, a dengue do tipo 1 pela primeira vez, você está protegido contra dengue 1, mas ainda tem a chance de pegar dengue 2, dengue 3 ou dengue 4. E elas são semelhantes, mas não idênticas à dengue 1.

Quando você pega a dengue 2 e tem a ativação do sistema imunológico que foi desenvolvido para dengue 1, há um processo chamado “aprimoramento dependente de anticorpos ou ADI”. É um processo em que o anticorpo, que geralmente pode se ligar ao vírus e eliminá-lo/neutralizá-lo, não faz isso (por ser um sorotipo diferente). Em vez disso, ele prende e se liga ao vírus. E, aí, você tem mais vírus entrando em uma célula infectada. O anticorpo, em vez de protegê-lo, está capturando mais vírus e permitindo que ele entre na célula.

O ADI já foi demonstrado para outros vírus, como influenza. Parte do pensamento é que, porque você tem imunidade parcial ou não completa, você não está bem protegido. Em vez disso, você está ficando um pouco mais doente.

Agora, temos uma vacina contra a dengue que pode ser amplamente aplicada na população. Por que demorou tanto?

Nos últimos 50 ou 60 anos, há pesquisas para desenvolver uma vacina para a dengue. Durante a Segunda Guerra Mundial, os soldados dos Estados Unidos viajavam para áreas onde a dengue era endêmica, e foi reconhecido que havia a necessidade de desenvolver uma vacina. Ela começou a ser desenvolvida nos Estados Unidos em 1945.

Originalmente, começaram a desenvolver vacinas contra um sorotipo. Depois, perceberam que, se tivessem que proteger alguém contra todos os quatro sorotipos, teriam que fazer uma vacina tetravalente. Eles passaram a cultivar cada um dos vírus separadamente. Então, o desafio é combiná-los.

Uma vez que começaram a combinar os vírus, fizeram uma série de ensaios em modelos animais e em ensaios clínicos e perceberam que, na verdade, alguns dos vírus competem entre si. Por exemplo: a dengue 1 compete com a 4. Então, agora, quando você o dá imunizante a um ser humano, só obtém uma resposta contra a dengue 1 – mas, contra dengue 4, diminui.

Essa interferência viral atrasou o campo em 30 ou 40 anos. Levou muito tempo para entender como podemos dar às pessoas quatro vírus e ter imunidade igual ou replicação igual de cada um deles.

Hoje, no Brasil, os quatro sorotipos de dengue estão circulando. Quando as vacinas foram testadas, esse não era o cenário. Devemos nos preocupar?

Para a vacina da Takeda, eles realizaram um ensaio de eficácia de quatro anos e meio em diferentes partes do mundo, e tiveram uma boa proteção contra o vírus da dengue 1 e da dengue 2. Não tiveram uma proteção muito boa contra o vírus da dengue 3 e não tiveram casos suficientes para detectar se seria protetora contra dengue 4.

Um dos desafios de realizar ensaios clínicos é que, quando você está testando, precisa que o vírus esteja circulando para causar doenças em pessoas e ver se sua vacina é eficaz ou não. O Brasil não teve casos de dengue 3 nos últimos 15 anos, e, agora, em 2023 e 2024, esse vírus voltou.

Com o ensaio da vacina contra dengue do Butantan, que foi feito de 2016 a 2019, eles não foram capazes de provar a eficácia contra dengue 3 e dengue 4. Mas, com base na imunogenicidade da vacina do Butantan e com base em muitos testes pré-clínicos que foram feitos no NIH mostrando que há replicação igual de todos os quatro sorotipos, espera-se que a vacina do NIH/Butantan seja imunogênica e protetora contra todos os quatro sorotipos.

Acho que sempre há motivo de preocupação quando você não tem uma vacina que seja eficaz contra todos os quatro sorotipos. Mas atualmente, com base nos sorotipos circulantes, a vacina da Takeda deve ser eficaz, na minha opinião, porque parece haver muito vírus do tipo 1 e 2 circulando, e essa vacina já mostrou claramente ser eficaz contra eles.

Temos poucas doses da vacina disponíveis. Parte disso, dizem, é por causa de detalhes técnicos, que também ocorrem na vacina do Butantan. Quais estratégias podem ajudar a escalar a produção de vacinas?

Eles já estão preparados e têm as instalações para aumentar a produção. Mas ter 5 mil doses para um ensaio clínico é muito diferente de ter vacina suficiente para vacinar toda a população.

Novamente, há quatro vírus, cada um precisa ser cultivado em cultura líquida. Você tem que garantir que haja vírus suficiente e purificá-lo. Ou seja, tem que reduzi-los para uma pequena quantidade em forma líquida para poder administrar nos humanos.

Agora, a questão é a estabilidade da vacina. Como é um vírus vivo, você quer que fique estável por um longo tempo, e isso é um grande desafio. Se deixar a vacina em forma líquida, pode não ficar estável por muito tempo. Como torná-la mais estável? Um dos processos é chamado de liofilização. Eles congelam e secam a vácuo a vacina, e transformam esse líquido em pó. Mas também há o desafio de retirar a água de todo o sistema e transformá-lo em pó. Afinal, você está perturbando esse vírus. Existem muitos detalhes intricados e complicados na liofilização.

Agora, NIH/Butantan, Takeda, Sanofi, todos conseguiram fazer isso. É muito desafiador, mas todos estão à altura da tarefa e fizeram isso. Esses processos garantem a segurança, mas levam um tempo extra. A vantagem é que você pode fazer isso. A desvantagem é que agora pode levar uma semana a mais para produzir cada lote, em vez de um ou dois dias.

A vantagem de ter um produto liofilizado também é que você pode armazená-lo a 4°C em vez de -80°C. Isso é muito prático se quiser alcançar partes remotas do Brasil. Fazer as formulações líquidas é mais fácil, mas tem que pesar o risco de transportar essas vacinas.

Talvez uma estratégia que o Butantan e outros fabricantes de vacinas estejam pensando é tentar fazer ambos. Nas cidades em que você tem acesso a instituições e centros com capacidade de armazenamento, você pode dar a formulação líquida. Já as preparações liofilizadas podem ir para as áreas remotas, onde podem ser armazenadas em uma geladeira ou um bloco de gelo.

À medida que você compartilha sua experiência no Brasil, que insights você espera ganhar ou já adquiriu sobre a pesquisa e política de saúde pública brasileiras?

Me sinto grata por estar aqui neste fellowship de ciências da Embaixada. Eu tinha um conhecimento muito superficial do que estava acontecendo no Butantan. Depois ficar aqui por dois meses, posso dizer que certamente é uma das instituições mais únicas em que já estive. Em parte, porque faz pesquisa básica, pesquisa pré-clínica, e tem a capacidade de realizar ensaios clínicos e de produzir produtos. Eles têm instalações de bioprodução, testes, armazenamento de amostras, enfim, todos os processos de bioprodução em grande escala para poder produzir vacinas. E é uma instituição sem fins lucrativos.

Para mim, é um exemplo tão único e positivo de saúde humana e serviço à comunidade ao mesmo tempo, e sem fins lucrativos. Obviamente, o Ministério da Saúde trabalha com o Butantan, e há uma boa colaboração para fazer isso acontecer, mas é muito impressionante.

Outra coisa que aprendi é que a saúde básica é coberta no Brasil. Isso é maravilhoso e impressionante. Também percebi que os brasileiros são muito adeptos às vacinas. Isso é uma grande vantagem para a nação, e não acontece em todos os lugares. Isso fala muito bem de sua nação e seu povo, porque eles estão dispostos a ouvir os especialistas em saúde e a aceitar que ser vacinado é algo bom. É uma grande vantagem.

Obviamente, existem desafios. Vocês têm uma grande população e há disparidade no acesso à saúde e na distribuição de renda. Isso ocorre em muitas nações em desenvolvimento e desenvolvidas. Porém, o Brasil tem um Ministério da Saúde muito ativo e instituições sem fins lucrativos muito ativas que estão na vanguarda.

Olhando para o futuro, quais avanços são necessários para aumentar a eficácia das vacinas como um todo? Além disso, quais técnicas emergentes têm potencial nesse sentido?

A ideia da vacinação é fornecer ao paciente um antígeno (uma proteína do patógeno) ou algum vírus ou bactéria (atenuados), e desencadear uma boa resposta imune. E os vírus, às vezes, podem ser enormes. É preciso fragmentar em pedaços muito pequenos e identificar qual o melhor epítopo (o lugar específico onde os anticorpos devem se ligar).

Isso é algo muito desafiador de se fazer. Para alguns vírus, até agora, como o Sars-CoV-2, foi compreendido muito cedo que a proteína spike era imunodominante. Isso significa que é um alvo para os anticorpos que são eficazes para isso (combater a infecção). Não é assim para muitos outros vírus, incluindo os da dengue.

Sobre tecnologias emergentes, penso em abordagens de inteligência artificial para tentar identificar quais poderiam ser os epítopos imunogênicos em vírus. Porque a inteligência artificial pode fazer algo em questão de segundos.

Há 25 anos, quando fiz minha tese de doutorado, meu trabalho era identificar epítopos que são reconhecidos pelas células T (células do sistema imunológico) para o vírus da dengue e isso levou cinco anos. Agora, chega o Sars-CoV-2, e eles identificaram epítopos em dois meses. As tecnologias melhoraram muito. A inteligência artificial é um exemplo de ferramenta ainda mais poderosa que poderia ser utilizada, com modelos matemáticos para tentar identificar quais são os melhores epítopos a serem rastreados.

Outra área, que é o caminho que o NIH está seguindo, é identificar um vírus protótipo em uma família. Por exemplo, há muitos vírus na família dos flavivírus, como os da dengue, da zika, da febre amarela e do nilo ocidental. A ideia é escolher um vírus que seja representativo de todos os integrantes dessa família e tentar desenvolver ferramentas avançadas para ele. E se cinco anos depois outro vírus da família causa uma pandemia, você já sabe muito sobre essa linhagem. Ou seja, o prazo para desenvolver reagentes para se livrar desse vírus será muito menor.

O NIH está tentando financiar pessoas que estudam famílias de vírus para uma futura preparação para pandemias.

Quatro anos após a declaração da pandemia da covid-19, o que aprendemos? E o que não aprendemos?

Aprendemos que a cooperação global é essencial. Se as sequências virais não tivessem sido compartilhadas no início e entregues a pesquisadores em diferentes partes do mundo, não teríamos chegado à sequência e identificado que o domínio de ligação ao receptor do Sars-CoV-2 era um alvo importante (tão rápido).

Aproveitar a estrutura clínica e os ensaios clínicos existentes também é muito importante. A grande vantagem do combate à covid e o motivo pelo qual alguns dos ensaios avançaram tão rapidamente é que os ensaios clínicos foram conduzidos em paralelo, isto é, fases 1, 2 e 3 juntas, o que normalmente não é o que as pessoas fazem.

Sobre as lições que foram desafiadoras: nem sempre é fácil prever como os humanos respondem e o que acham importante para sua saúde e independência. Isso sempre é um desafio. Admiro todos os agentes da saúde pública e pesquisadores em todo o mundo que realizaram a tarefa muito difícil de ir por aí e tentar convencer e educar as pessoas Foi muito difícil para eles e suas famílias.

Espero que tenhamos aprendido algumas boas lições com a pandemia. Foi muito exaustivo, e as pessoas ainda estão enfrentando as consequências disso.

Fonte: Leon Ferrari | Estadão