Apenas nos três primeiros meses de 2024, o Brasil já possui mais de um milhão de casos de dengue registrados. A situação é alarmante não apenas para os profissionais da Saúde, mas para a população geral, uma vez que afeta a todos igualmente e representa um grande risco para a sociedade. Pensando nisso, na última quarta-feira, 6 de março, a Associação Paulista de Medicina retornou com a sua série de Webinars, trazendo como tema central o assunto do momento, Dengue – Estado Atual e Perspectivas.
A reunião contou com o presidente da APM, Antonio José Gonçalves, como apresentador, e os diretores Científicos da instituição, Paulo Pêgo e Marianne Nakai como moderadores. As palestras ficaram por conta de Carlos Magno, professor Titular e diretor da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB/Unesp) e presidente da Sociedade Paulista de Infectologia, e Ana Sartori, infectologista e professora associada do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Gonçalves destaca os objetivos do Webinar: “Estamos reiniciando esta série no sentido de esclarecer à população médica e geral a respeito dos problemas mais atuais que existem na Medicina e que afligem a população. Isso faz parte do trabalho da APM, esclarecendo, colocando dados e evidências científicas para que possamos trazer uma Saúde de qualidade. Espero que todos saiam deste webinar com mais conhecimentos e mais elementos para combater essa doença que tem provocado mortes, perdas e inúmeros transtornos no nosso País.”
Aspectos clínicos e epidemiológicos
Carlos Magno iniciou as apresentações falando sobre os “Aspectos clínicos e epidemiológicos” da infecção por dengue. Ele relembrou que desde 1980 a arbovirose vem ressurgindo de forma notável no País, aumentando cada vez mais a sua incidência e número de casos graves e mortes. A última grande epidemia de dengue enfrentada pelo Brasil havia sido em 2015, de modo que, desde 2020, vem sendo possível identificar um crescimento contínuo da infecção – que possui uma característica incomum nesta nova onda, já que a explosão de casos está acontecendo no Sudeste e não no Nordeste, que por muitos anos foi o epicentro.
O especialista também recordou que no município de São Paulo, a dengue normalmente entra pela região da Zona Norte, próximo de Guarulhos, e pela Zona Oeste, em Osasco. “O Aedes aegypti é um vetor que vive por pouco tempo e que circula pouco a partir do local em que ele eclode, cerca de 100 metros. Quando a dengue começa a ocorrer, ela se espalha de uma maneira espacialmente contígua e vai sufocando a cidade. Mas isso é importante porque significa que quando temos um caso suspeito, se fizermos uma varredura ao redor de domicílios, conseguiremos eliminar vetores e diminuir de forma importante a transmissão.”
Magno relembrou que a Organização Mundial da Saúde reclassificou os casos de dengue entre A e D, sendo eles: casos A, leves; casos B, que ainda são relativamente leves, mas que precisam de atenção; casos C, que requisitam internação hospitalar para hidratação; casos D, que são graves e já estão em choque, precisando de uma conduta em UTI. Além disso, artigos voltados ao tema demonstram que há mais mortalidade por dengue em países da América Latina e do Caribe, que são justamente os que vêm enfrentando epidemias pela arbovirose há mais tempo.
“Sabemos que quando a pessoa tem dengue mais de uma vez, o risco de acontecer casos graves aumenta. Então, quando tem muitos anos de endemicidade da dengue, isso significa que já houve epidemias sucessivas por sorotipos diferentes, que vão determinar mais casos graves. Um artigo de 2015 mostra que morrem mais homens, idosos e pessoas com comorbidades. Também há mais mortes ente aqueles com nível educacional e vulnerabilidade social pior, onde não há qualidade e uma cobertura de Saúde para a população”, explicou.
Dentre as formas de condução para o tratamento da dengue, o médico destacou que não há um específico, mas que um manejo padronizado pela OMS e detalhado pelo Ministério da Saúde é uma forma de acompanhar o cuidado, sabendo identificar se o indivíduo se enquadra entre as classificações de A a D e se são pacientes que constituem o grupo de risco, como idosos, pessoas com insuficiência cardíaca ou renal e pacientes com distúrbios de coagulação.
O palestrante informou que, infelizmente, políticas públicas para controle de vetores têm se mostrado falhas, não havendo uma vantagem estatisticamente significante de intervenção. “Só o controle de vetores não vai conter a arbovirose, assim como só a vacina também não, mas sim uma ação conjunta entre ambos, que terá um potencial imenso de atingirmos um controle da dengue”, concluiu.
Vacinação
No Brasil, já foi dada a largada para a corrida pela vacinação contra a dengue – o País, aliás, é o primeiro do mundo a implementar o imunizante contra a arbovirose no sistema público. Para falar mais sobre o tema e elucidar os principais desafios relacionados, Ana Sartori deu continuidade às apresentações, relembrando que o desenvolvimento de vacinas sempre foi considerado prioridade em saúde pública. A especialista detalhou algumas das características mais predominantes das vacinas Dengvaxia, QDenga e a do Instituto Butantan, esta que atualmente está em fase de testes.
“Entre os múltiplos desafios para o desenvolvimento das vacinas de dengue, o mais importante é o fato de que a homologia entre os quatro sorotipos é incompleta. Os intervalos entre as infecções também são importantes, uma vez que após dois ou três anos, há uma diminuição dos anticorpos, ocasionando novamente o risco da doença”, explicou, além de exemplificar os itens principais para uma vacina ideal contra a dengue.
“É preciso que tenha boa tolerância e baixa reatogenicidade, que provoque uma resposta imune efetiva e balanceada para todos os sorotipos, que tenha uma proteção de longa duração, que não interfira com outras vacinas, tenha um número mínimo de doses e possua um preço acessível”, complementa a especialista.
Descrevendo as atuais vacinas contra a dengue, a professora relembrou que a Dengvaxia é uma vacina de vírus vivo atenuado quimérico que foi estudada em um esquema de três doses – um desafio para a saúde pública, já que se demoraria um ano para vacinar as pessoas. É um imunizante que depende de exposição prévia à dengue, com eficácia geral moderada, de 55% a 65%. “A partir de 2017, há uma recomendação da OMS e da Anvisa para que a vacina seja de uso restrito aos pacientes que já foram previamente expostos à dengue, o que praticamente inviabilizou o seu uso em programas de saúde pública.”
A QDenga, por sua vez, passou a ser incorporada no SUS no começo deste ano, e a sua estratégia exige menos doses, fazendo com que o esquema de vacinação possa ser mais confortável (duas doses em um intervalo de três meses). Os estudos de fase 3 foram realizados na América Latina e Ásia, englobando mais de 20 mil crianças e adolescentes de quatro a 16 anos. A vacina teve eficácia comprovada para casos de exposição à dengue 1 e 2, mas ainda há necessidade de estudos para fase 4 – tanto para estabelecer efetividade da vacina quanto para farmacovigilância.
Porém, este imunizante ainda possui uma capacidade muito limitada de produção e distribuição, determinando a necessidade de se estabelecer qual seria a população prioritária para a vacinação, considerando faixa etária (de dez a 14 anos, que é a que possui o maior número de hospitalizações) e municípios com as incidências mais altas de dengue (ou seja, aqueles com população maior que 100 mil habitantes, com alta transmissão entre 2013 e 2022 e com predominância do tipo 2).
Por fim, há a vacina do Instituto Butantan, que está em fase final de testes e se prepara para a comercialização. Ela se difere das demais por ser uma dose única e por ter sido estudada apenas em território nacional, contando com a participação ampla de mais de 16 mil voluntários entre dois e 59 anos. Todavia, por conta de o Brasil não ter registrado casos de dengue tipos 3 e 4, estudos com foco nestas sorologias ainda não puderam ser conduzidos.
“As vacinas são um instrumento muito importante no combate à dengue. Além disso, devido às outras arboviroses transmitidas pelo Aedes, há a necessidade de manter e até mesmo intensificar o controle do vetor. Temos 9% da população brasileira sem acesso à coleta de resíduos sólidos, lembrando que o lixo se acumula e que isso também é um local de desenvolvimento do vetor. A superação da dengue passa pela resolução de problemas de saneamento básico no nosso País”, finalizou.
Fotos: Reprodução Webinar APM