A doença meningocócica é um distúrbio grave, raro e que, em alguns casos, pode deixar consideráveis sequelas e evoluir a óbito. Ocasionada pela Neisseria meningitidis, a infecção é uma preocupação às autoridades e profissionais da Saúde, uma vez que pode acometer indivíduos de todas as idades, caso não estejam vacinados.
O pediatra e infectologista Marco Aurélio Sáfadi participou do segundo módulo de webinar da APM sobre atualização em imunizações, no último mês de abril, explicando as manifestações que a doença pode apresentar e de que maneira a vacinação é fundamental para proteger os indivíduos e evitar a evolução para quadros irreversíveis. Confira os destaques a seguir.
Quais as principais particularidades da doença meningocócica?
Ela é uma doença que possui características únicas. Um ponto importante a se destacar inicialmente é que, por se tratar de uma doença rara, as taxas de incidência no nosso País e na grande maioria do mundo, são baixas. A despeito de ser uma doença rara, ela tem características de imprevisibilidade e de altas taxas de letalidade – no Brasil, está em torno de 20%, ou seja, um a cada cinco acometidos acaba evoluindo de forma fatal. Entre os que sobrevivem, cerca de 20% a 30% apresentam sequelas de longo prazo, sejam neurológicas, visuais, auditivas ou por meio da amputação de membros, por exemplo.
Como identificar se há riscos de desenvolver a doença?
A doença meningocócica acomete, em mais de 90% dos casos, indivíduos previamente saudáveis. Um conceito muito importante é o da colonização, pré-requisito necessário para que ocorra a doença. O indivíduo tem que ter sido previamente colonizado em sua nasofaringe pela bactéria, por um tipo de meningococo associado à virulência. Em um paciente desprovido de proteção e, de forma geral, em situações que facilitem a passagem desse patógeno da nasofaringe para a corrente sanguínea, de infecções concomitantes virais e outras situações clínicas que abalem o estado de imunidade em níveis de mucosas, ocorre a doença meningocócica.
Como a vacinação colabora para diminuir o número de infecções?
É muito importante conhecer onde estão as taxas mais altas de colonização, o que é muito claro na literatura, de modo que sabemos que os principais grupos etários que participam da transmissão do patógeno são os adolescentes e os adultos jovens. Isso significa que se dispusermos de intervenções que possam, de alguma forma, prevenira aquisição da colonização em nasofaringe por este grupo, temos a expectativa de alcançarmos a imunidade indireta dessa população e interromper a transmissão daquele patógeno na comunidade. É exatamente isso que as vacinas meningocócicas conjugadas fazem, ou seja, conseguem não só gerar proteção contra a doença, mas também agregam proteção contra o estado de colonização. Indivíduos que recebem essas vacinas deixam de adquirir a possibilidade de serem portadores, mesmo que assintomáticos, do meningococo.
Quais países podem ser considerados exemplos na vacinação contra a doença meningocócica?
Eu acho que os exemplos que Holanda e Reino Unido nos proporcionaram em relação ao que se pode esperar quando se implementa esta vacina no Programa de Imunização, com elevadas coberturas, são emblemáticos. A Holanda optou por introduzir a vacina de meningococo C para toda a população de 1 a 18 anos, estendendo posteriormente a vacinação até os adultos de 25 anos. A despeito de não ter incluído os bebês no primeiro ano de vida ou adultos com mais de 25 anos na campanha de vacinação, eles observaram já no ano seguinte um impacto substancial nas taxas de incidência em todos os grupos etários, inclusive em grupos não vacinados. O fato de ter atingido, lá na Holanda, uma alta cobertura vacinal, particularmente de adolescentes e adultos jovens, fez com que se interrompesse a transmissão do patógeno na população e oferecesse o benefício da proteção até mesmo para grupos etários não vacinados. Isso demonstra a capacidade que as vacinas conjugadas têm de controlar as taxas de incidência da doença meningocócica.
Sobre o Brasil, como estão os níveis desta imunização?
Aqui, nós também introduzimos a vacina de meningococo C, só que ao contrário do que foi feito na Europa, ela foi introduzida no ano de 2010 no PNI apenas para lactentes porque não tínhamos, na época, condição de contemplar toda a população de 2 a 18 anos. Isso fez com que se controlasse a doença entre os lactentes, persistindo, porém, a ocorrência de casos, principalmente nos grupos etários mais velhos, de adolescentes e adultos que não haviam recebido a vacina. Com o objetivo de garantir o controle da transmissão do patógeno na comunidade, em 2017, uma dose da vacina C conjugada foi incorporada na rotina dos adolescentes de 11 a 12 anos, sendo a partir de 2019 substituída pela vacina ACWY, com o objetivo de ampliar a proteção para os demais sorogrupos. Mas, infelizmente, ainda com taxa de cobertura muito distante daquela necessária para alcançarmos a imunidade indireta, como no caso da Holanda, Reino Unido e outros países europeus.
Quais as recomendações de vacinas meningocócicas no Brasil?
As vacinas, no Ministério da Saúde, contemplam a MenC, conjugada em três doses no primeiro ano de vida (aos três, cinco e 12 meses e o reforço, atualmente entre 11 e 14 anos, que é feito com a vacina ACWY. As Sociedades Brasileiras de Pediatria e de Imunizações entendem que, por se tratar de uma doença de muita gravidade, com riscos, é preciso estender a recomendação para crianças e adolescentes, privilegiando a vacina ACWY e a vacina de meningococo B – neste caso, há duas vacinas proteicas autorizadas para uso no País.
O que é possível esperar no âmbito da prevenção à doença meningocócica?
A doença meningocócica é imprevisível, e isso faz com que sempre tentemos otimizar a proteção contra ela, passando pelo uso de vacinas multivalentes. Há uma perspectiva de que nos próximos um ou dois anos tenhamos a possibilidade de contar com uma vacina combinada ACWY e meningococo B, que está em fase final de desenvolvimento e, uma vez licenciada, seguramente traria uma perspectiva muito interessante de proteção. Gostaria de lembrar que a pandemia de Covid-19 trouxe diminuição nas taxas de incidência da doença, mas o mundo inteiro já está vivenciando o retorno destas taxas aos níveis pré-pandêmicos, destacando a importância de resgatarmos as coberturas vacinais para não voltarmos a observar a ocorrência de surtos e outras situações que, obviamente, gostaríamos de evitar.
Publicada na edição 737 – Maio de 2023 da Revista da APM
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