A Medicina de Família e Comunidade é a especialidade que presta assistência à saúde continuada, integral e abrangente de indivíduos, famílias e comunidades. Estes médicos realizam todo o acompanhamento do paciente, exercendo papel importante na Atenção Primária à Saúde. Em entrevista exclusiva à Revista da APM, Natália Oliveira e Guilherme Pereira, presidente e diretor de Exercício Profissional e Mercado de Trabalho da Associação Paulista de Medicina de Família e Comunidade (APMFC), respectivamente, falam sobre os principais desafios e conquistas da especialidade. Confira a seguir.
Desde quando a Medicina de Família e Comunidade é uma especialidade reconhecida?
NATÁLIA OLIVEIRA: A MFC é reconhecida como especialidade desde 1978, porém, até 2002 era conhecida como Medicina Geral e Comunitária. A mudança aconteceu, principalmente, para dar ênfase à abrangência do cuidado da família e comunidade. Na última década, a especialidade tem crescido e se popularizado entre os colegas médicos e a população, muito por conta da mudança no currículo da graduação de Medicina, que prevê a disciplina como obrigatória em todo período de formação. Com isso, se dá o aumento da formação de especialistas nesta área.
GUILHERME PEREIRA: A trajetória da MFC perpassa pela inspiração dos modelos britânico e canadense, consoantes com os movimentos de base comunitária que aconteceram no Brasil com a fundação do SUS e depois com a criação do Programa de Saúde da Família. Atualmente, a especialidade é reconhecida por ter sua sociedade de especialidade, filiada a organismos internacionais, e por possuir competências próprias que guiam a formação de especialistas no País.
Segundo a última Demografia Médica, temos pouco mais de 11 mil especialistas em Medicina de Família e Comunidade no Brasil e 2 mil em São Paulo. Acreditam que seja suficiente?
NATÁLIA OLIVEIRA: De acordo com levantamento da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), precisaríamos ter em torno de 70 mil especialistas para suprir as necessidades de Saúde da população do País. Apesar do aumento, o número de profissionais ainda está aquém do esperado. Entendemos a nossa especialidade como porta de entrada para todo o sistema de Saúde, seja público ou privado, e com isso a demanda acaba sendo grande. O número de MFC necessário para cada região depende das especificidades de cada local. O número de profissionais necessários depende de questões como vulnerabilidade social, densidade demográfica e outras características da população, como idade, por exemplo.
GUILHERME PEREIRA: Com certeza, não. De acordo com padrões internacionais, para que o MFC possa, de fato, manter alta resolutividade e coordenação efetiva do cuidado, seria preciso um especialista a cada 2 a 3 mil pacientes. Pegando a população do estado de São Paulo, percebe-se que o número de MFC ainda está muito aquém do necessário. Sem dúvida, o cuidado multiprofissional ajuda nessa tarefa, mas ainda precisamos prover mais especialistas para o nosso estado.
Quantos programas de residência na especialidade existem no Brasil e em SP? Entendem que precisaríamos formar mais especialistas na área?
NATÁLIA OLIVEIRA: Existem aproximadamente 400 programas de residências em todo País e 45 no estado de São Paulo. Entendemos que precisamos formar mais especialistas na área, principalmente pela necessidade na atenção primária à Saúde no SUS – sem abrir mão da qualidade na formação e priorizando os programas de residência médica. Esta qualificação deve incluir a estrutura do sistema de Saúde, garantindo boas condições de trabalho e aprendizado, assim como o fortalecimento da atenção primária à Saúde, com recursos humanos qualificados.
GUILHERME PEREIRA: Precisamos, sim, de mais especialistas e entendemos que a residência médica é o padrão-ouro para a formação deste médico de família e comunidade qualificado, coordenador do cuidado e que atua a partir de uma Medicina centrada na pessoa. É urgente o fomento da abertura de mais programas, bem como supervisão e aprimoramento daqueles já existentes.
Como se posicionam em relação à Carreira de Estado para a atenção básica?
NATÁLIA OLIVEIRA: Sem dúvidas, precisamos pensar em uma maneira de fixar mais profissionais na APS e no SUS como um todo. A Carreira de Estado é um desses caminhos, mas acredito que precisamos fazer uma discussão mais ampla, envolvendo diversos setores da sociedade, profissionais da Saúde, Governo e instituições. Desta forma, garantiremos uma discussão democrática sobre o assunto. Não podemos deixar de falar sobre outras questões que também são fundamentais para fixar profissionais, como infraestrutura adequada, recursos necessários, qualificação profissional e tempo para educação e pesquisa.
GUILHERME PEREIRA: Dado que um dos princípios da atenção básica é a longitudinalidade, a fixação dos profissionais que nela atuam é fundamental, tanto médicos como enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas e agentes comunitários de Saúde, entre outros. Desenhar uma Carreira de Estado, com planos de incentivo para fixação, pautada na equidade do SUS, seria muito importante.
Como são as interfaces com as outras especialidades?
NATÁLIA OLIVEIRA: A MFC é a especialidade que prepara o médico para atender com qualidade às questões de Saúde mais prevalentes da população, visando um olhar integral à pessoa. Com isso, temos uma grande interação e interface com diversas especialidades, principalmente pela MFC ter o papel de coordenar o cuidado à pessoa.
GUILHERME PEREIRA: Diariamente, em nossos consultórios, referenciamos pacientes que se beneficiariam de especialistas focais. O conhecimento e abrangência da MFC são amplos, enquanto de outras especialidades são profundos e específicos. Estima-se que entre 20% e 30% dos pacientes atendidos pela MFC necessitarão de ajuda de um especialista focal. Este compartilhamento do cuidado é potencializado quando as ferramentas de comunicação entre estes dois profissionais são efetivas. A APMFC e a SBMFC estão abertas a dialogar com as outras sociedades científicas.
Como é a atuação da especialidade nas Saúdes pública e privada?
NATÁLIA OLIVEIRA: A atuação da MFC é bastante diversificada, tanto no público quanto no privado. O maior cenário de atuação é no SUS, dentro da atenção primária à Saúde. Neste contexto, somos responsáveis por fornecer cuidados abrangentes e contínuos a indivíduos, famílias e comunidades. Isso inclui o diagnóstico, tratamento de doenças, prevenção, promoção da Saúde, orientação sobre hábitos saudáveis e o gerenciamento de condições crônicas. Além disso, podem participar de programas de saúde coletiva, planejamento familiar, vacinação e outras ações de saúde pública. No privado, temos um expressivo número de oportunidades no estado de São Paulo. Existe uma diversificação ainda maior de possibilidades de atuação, além das mesmas funções no SUS, podendo atuar em corporações, startups e cooperativas, entre outros.
GUILHERME PEREIRA: O especialista é apto para atuar tanto na clínica ou assistência, quanto em posições de gestão, regulação, preceptoria e docência, entre outros. No SUS, esta atuação costuma acontecer nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), principalmente na Estratégia de Saúde da Família (ESF). Na saúde suplementar, em consultório particular, clínicas corporativas, planos e cooperativas.
Publicada na edição 738 – Junho/Julho de 2023 da Revista da APM
Fotos: Arquivo pessoal