Relação da pandemia com a religião é tema de Webinar APM

Como as religiões podem nos dar conforto diante de perdas, solidão, depressão e tristeza, trazidas com a pandemia de Covid-19? Para abordar o tema, no dia 21 de abril, o webinar da Associação Paulista de Medicina contou com a participação de quatro importantes líderes religiosos

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Como as religiões podem nos dar conforto diante de perdas, solidão, depressão e tristeza, trazidas com a pandemia de Covid-19? Para abordar o tema, no dia 21 de abril, o webinar da Associação Paulista de Medicina contou com a participação de quatro importantes líderes religiosos para falar sobre a relação entre fé e Ciência.

“No início desta pandemia, não poderíamos imaginar o que nos aguardava. Nos dedicamos com grande intensidade aos assuntos técnicos voltados à prática clínica de pacientes afetados pela Covid-19 e de que forma poderíamos contribuir para o gerenciamento desta crise sanitária. Mesmo assim, os sacrifícios nos levaram e nos levam a incertezas. Ainda dá tempo de refletirmos sobre a religião e a contribuição inegável que a fé nos traz em momentos tão difíceis”, iniciou o presidente da APM, José Luiz Gomes do Amaral.  

Judaísmo

Em seguida, o presidente do Conselho Deliberativo da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, Claudio Luiz Lottenberg, apresentou o rabino Ruben Sternschein, da Congregação Israelita Paulista (CIP), para a exposição “Pandemia e Judaísmo”. Ele fundou e dirigiu a primeira comunidade judaica liberal da Espanha e em Jerusalém e foi selecionado como representante judaico para o grupo inter-religioso da Unesco, desenvolvendo o documento “Uma Ética Universal”.

Na teologia judaica, explica Sternschein, apesar de diversa, com linhas e textos interpretativos, a imperfeição é vista como um desafio essencial, quase proposital. “A tradição judaica acredita que existe uma imperfeição essencial em tudo. O fato de o mundo ser imperfeito, os corpos, os indivíduos serem imperfeitos, não é um motivo de passividade nem de tristeza, muito menos de mediocridade.” Nesse sentido, o rabino acrescenta que a imperfeição existe para dar sentido à vida com ação e comprometimento.

Os atos sociais devem ser conduzidos ao conserto, à melhora e ao aprimoramento em prol da construção de uma sociedade melhor. “Devemos esgotar nossas capacidades, e aí vem a aplicação de que governar, em Gênesis, é a mesma que coisa de cuidar e desenvolver a terra, a vida. Isso significa que quando plantamos árvores, construímos, desenvolvemos a Ciência e especificamente estudamos Medicina, estamos fazendo um ato de Deus, cumprindo uma missão divina que é cuidar de vidas, curar e desenvolver a terra.”

A exemplo de uma pandemia na época bíblica, Sternschein citou a passagem Tzaraat, que pode ser interpretada como uma doença simbólica, física ou social. Em caso positivo de contaminação, a pessoa infectada tinha de se isolar. Depois da cura, vinha o ato de reincorporação à sociedade. “Um ato de prestígio incrível. Para a pessoa que voltava da doença, era como se fosse um representante do divino, um sacerdote acima da sociedade comum, porque ele já tinha os anticorpos.”

Para os casos graves, que levavam ao afastamento indefinido, quando um especialista encontrava o doente, gritava duas vezes ‘impuro’, e ele também. “É uma forma de chacoalhar a sociedade. Séculos depois, sábios decodificaram a lei judaica e disseram que era uma forma de chamar a atenção da sociedade, de cuidar da família e da reputação daquela pessoa, buscar mais empenho de cura para ela voltar. Estamos gritando para identificar e ela está gritando para nos chamar a atenção sobre a nossa responsabilidade social”, explica o rabino.

Em síntese, o representante da CIP chamou a atenção de não nos omitirmos diante dos fatos e entendermos que o problema dos fracos da sociedade, sejam no aspecto social ou físico, é de todos. “Sempre existem partes nossas quebradas e partes de nós fortes. Ninguém é somente uma tábua inteira, ninguém é somente forte, ninguém é somente são, e a pandemia nos mostra isso. Todos nós podemos ficar doentes, contaminar e cuidar, sarar e ajudar a sarar os outros. É dinâmico e convoca a todos! Trata-se de uma democratização da doença, da saúde e da responsabilidade.”

Igreja católica

O 4º vice-presidente da APM, Luiz Eugênio Garcez, apresentou o padre da Ordem de São Camilo Anísio Baldessin, coordenador do curso de pós-graduação em Bioética e Pastoral da Saúde da São Camilo, que prestou por 20 anos assistência religiosa como capelão, no Hospital das Clínicas de São Paulo.

Ao iniciar a sua exposição, Baldessin citou o versículo 9 de São João: “E passando, Jesus viu um homem cego de nascença. E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus. Convém que eu faça as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar”.

“Eu gosto muito dessa passagem porque até hoje, quando atendo pessoas doentes, principalmente, agora com a pandemia, sempre me questionam: ‘mas de quem é a culpa? Por que isso aconteceu?’ Essa passagem é interessante porque Jesus não deu uma resposta. Se ele não deu a resposta, não sou eu que irei arriscar aqui a responder porque que ele nasceu cego. Mas ao continuarmos lendo, vamos ver que Jesus faz o barro e o coloca nos olhos do cego que, em seguida, começa a enxergar. Vai ao encontro do que o rabino expôs: o que fazer diante do sofrimento, diante de uma pandemia? Entendo que a primeira coisa a se fazer não é questionar sobre o que aconteceu, mas o que podemos fazer agora? Foi o que Jesus fez diante de alguém que estava sofrendo. Porque a pessoa em sofrimento não espera uma resposta, espera uma ação. E Jesus mostra isso”, destaca o padre.

Citando outra passagem, no livro Atos dos Apóstolos, capítulo 3, descreve: “Certo dia, Pedro e João estavam subindo ao templo na hora da oração, às três horas da tarde. Estava sendo levado para a porta do templo chamado Formosa um aleijado de nascença, que ali era colocado todos os dias para pedir esmolas aos que entravam no templo. Vendo que Pedro e João iam entrar no pátio do templo, pediu-lhes esmola. Pedro e João olharam bem para ele e, então, Pedro disse: ‘Olhe para nós!’. O homem olhou para eles com atenção, esperando receber deles alguma coisa. Disse Pedro: ‘Não tenho prata nem ouro, mas o que tenho, isto lhe dou. Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, ande’. Segurando-o pela mão direita, ajudou-o a levantar-se, e imediatamente os pés e os tornozelos do homem ficaram firmes”.

Aqui, o evangelista Lucas – esclarece Baldessin – não enaltece a ideia de milagre, pelo contrário, destaca que a esmola é uma ajuda momentânea, visto que o problema físico daquele homem continuaria. “Ele abre um leque de oportunidades e é exatamente essa a missão de um assistente espiritual religioso. Ele pode não reestabelecer a cura física, o milagre, mas pode garantir vida eterna, isso vale muito mais do que ouro e prata. A mensagem de Jesus é muito clara aos primeiros discípulos: preguem o evangelho, curem os doentes e anunciem que o reino de Deus está próximo. Ou seja, não espere que as coisas caiam do céu, a exemplo de inúmeros fatos relatados no evangelho, como a multiplicação dos pães, que fala da capacidade de mudar a mentalidade das pessoas, de aprender a se reorganizar e partilhar.”

Islã

Para falar sobre o islamismo e a Covid-19, o professor livre docente da Universidade de São Paulo Riad Younes apresentou o sheikh Jihad Hassan Hammadeh, vice-presidente da União Nacional das Entidades Islâmicas e palestrante, debatedor e entrevistado no Brasil e no exterior sobre diversos assuntos ligados à religião, cultura e história, como também conflitos no Oriente Médio, refugiados e direitos humanos.

O profeta mulçumano Muhammad (que nasceu em 570 d.C., em Meca), explica Hammadeh, diz que Deus colocou a doença e a cura como o equilíbrio da vida; para cada doença, uma cura. “Então, busquem a cura, busquem o remédio, a solução para essas doenças e evitem aquilo que é pecado, aquilo que é nocivo, aquilo que prejudica mais do que beneficia. Essas são as regras gerais que vão determinar a ética profissional islâmica da aplicação do trabalho e da Medicina.”

No primeiro versículo revelado por Deus ao profeta Muhammad, só se alcança a solução dos nossos problemas se há elevação espiritual, mental e física, através do conhecimento. “É por isso que Deus, no Alcorão Sagrado, disse: ‘perguntem aos outros se vocês não têm esses conhecimentos. Se não temos condições de saber, condições de nos curar, temos que buscar as pessoas adequadas que conhecem o tema e sabem nos orientar. Neste caso, são os profissionais da Saúde e da área médica, pessoas especializadas. A religião une a Ciência e a fé, sem esquecer que a fé é a base ainda para as demais áreas”, reitera o sheikh.

Além de buscar a Medicina, o livro sagrado dos mulçumanos fala de cuidados, de não se colocar em situação de risco. Assim, nos três aspectos – espiritual, mental/emocional e físico -, a cura física depende do mental e o vazio espiritual desestabiliza as nossas emoções, a nossa mente.

“Quando assola a humanidade, como aconteceu agora com a pandemia, precisamos ter fé, estrutura para nos mantermos firmes, buscar a saída e solução e não ficarmos olhando somente para o problema, dimensionando-o. Por isso, o profeta Muhammad disse em um relato, antes que acontecesse uma epidemia: ‘se vocês souberem que em algum local ou região houver uma pandemia ou epidemia, quem estiver fora não entre nessa região, e quem estiver dentro não saia, esse é o isolamento’. A primeira coisa que a religião está determinando é o afastamento social, primeiro passo que devemos tomar para que essa doença não se alastre”, complementou.

Disse ainda que a fé não pode colocar a humanidade em situação de risco. “Não existe Ciência sem valores e não existe fé sem conhecimento. As duas têm que andar em equilíbrio.” Segundo Hammadeh, o profeta Muhammad também fala sobre notícias falsas. Atualmente, informações equivocadas, com frequência divulgadas em redes sociais, têm prejudicado as pessoas a tomarem os devidos cuidados com a saúde. “Muhammad diz: ‘basta de mentiras, de divulgar tudo o que escuta, considerando também ser uma pessoa mentirosa porque não certificou o que divulgou. É uma forma de precavermos de informações erradas e não levarmos outras pessoas a se prejudicarem.”

Na cultura mulçumana, outra narrativa diz para não falar mal de ninguém, não caluniar, não bater, não roubar. “Hoje, damos mais outra conotação: a máscara como forma de proteger e lavarmos as mãos e todas as partes do corpo à mostra. É exigido do mulçumano a higienização, porque a higienização é fé. Comportamento é fé, fé é comportamento, é caráter.”

No encerramento da palestra, o sheikh falou que a humanidade precisa mentalizar o otimismo para elevar a imunidade espiritual e emocional. “Isso beneficia meu corpo para agir contra os desafios, as doenças que podem acometê-lo.”

Igreja presbiteriana

Ficou incumbido ao diretor da 14ª Distrital da APM, Romar William Cullien Dellapiazza, apresentar o reverendo Aílton Gonçalves Dias Filho. Pastor há 33 anos da primeira igreja presbiteriana de Americana, foi secretário da pasta de Ação e Promoção Social da Prefeitura da cidade, até dezembro de 2020. É autor do livro Terra de Refugiados, que trata sobre a imigração norte-americana no final do século 19.

“Quero registrar aqui o meu lamento pela quantidade de mortos pela Covid-19, demonstrando que não era apenas uma gripezinha, inicialmente ventilado por alguns desmiolados. Estendo esse meu lamento demonstrando meus sinceros sentimentos aos familiares dos mais de 650 médicos ceifados pela pandemia em nosso País, em especial a minha homenagem aos médicos paulistas que tombaram como heróis, digno de registro de seus nomes no Panteão de heróis da República”, iniciou o pastor.

Como citado nas falas anteriores dos representantes religiosos, Dias destaca que o cristianismo presbiteriano crê na Ciência. “Preconiza um perfeito equilíbrio entre fé e razão. Não devemos ficar aquém nem além de nenhuma das duas realidades, assim, a fé que professamos se solidariza com as milhares de famílias brasileiras enlutadas pela perda de seus entes queridos.”

O religioso desabafa sobre o momento difícil de ir a vários ofícios fúnebres, nunca visto anteriormente. “Vivemos dias sombrios, difíceis, em que a morte nos rodeia. O Brasil chora seus mortos. A igreja cristã se coloca ao lado dessas famílias, cumprindo a orientação apostólica de chorar com os que choram. Nos colocamos ao lado de cada família brasileira e paulista com o objetivo de encontrar consolo e conforto aos enlutados.”

Ele acrescenta que a igreja cristã de vertente católica, ortodoxa ou reformada sempre esteve ao lado daqueles que choraram seus mortos, inclusive participando e cedendo seus espaços físicos para acolher pessoas. “Aqui em Americana, interior de São Paulo, onde vivo e pastoreio há mais de 30 anos, acolhemos de abril a agosto de 2020, mais de 400 pessoas em situação de rua, tentando livrá-los da transmissão do vírus.”

Ao citar a Epístola de Tiago, de se visitar órfãos e viúvas nas suas tribulações, o pastor assemelha as vítimas hoje dos “agentes da morte”. “Assim, aprendemos e tentamos levar ajuda, como igreja, para amenizar as dores das famílias que sofrem.” Reforça que a igreja (em seu aspecto físico) não é essencial no sentido de se manter aberta, frente à pandemia. “Essencial é Deus, é a farmácia aberta, é o hospital devidamente equipado, é o médico, é o profissional da Saúde. Assim, a igreja cristã acata com naturalidade os decretos restritivos de nossas celebrações. Entendemos que a hora é de recolhimento e de isolamento social, na tentativa de frear o ritmo de transmissão da Covid-19.”

Em plena expansão da pandemia, em fevereiro deste ano, critica o pastor, o Governo Federal editou um decreto facilitando ainda mais o acesso da sociedade a armas de fogo. “Publiquei um pequeno artigo na imprensa local criticando tal decreto e postura. A população não quer armas, quer vacinas.”

Lamenta inclusive a politização criada em torno de todo processo de fabricação, produção e distribuição de vacinas, falta de planejamento dos governantes e de vagas em UTIs, além da irresponsabilidade de parte da sociedade, que desobedece às orientações sanitárias e faz aglomerações.

“Estamos patinando na pandemia, devemos chegar ainda em julho deste ano a 600 mil mortes. Quatro ministros foram trocados da Pasta mais importante do momento, a Saúde. Como igreja cristã, esperamos seriedade dos nossos governantes, não podemos e não devemos brincar com vidas, a vida é um dom de Deus. Antes de religioso, sou brasileiro, quero deixar registrado aqui meu lamento pela situação que estamos vivendo e pagando um preço muito alto”, destacou Dias.

Linguajar da alma

“Nós, médicos, sabemos exatamente qual é o tamanho da nossa contribuição e o que os senhores podem nos oferecer face a essa situação. Cabe-me lembrar uma célebre mensagem do pai da cirurgia moderna Ambroise Paré, que sempre dizia, ‘não me parabenize, não tenho esse mérito, só fiz o curativo, quem o curou foi Deus’. E colocando no seu devido lugar, utilizando as palavras do rabino Ruben Sternschein, temos de fazer o curativo, não podemos esperar, se fizermos nossa parte e acreditarmos, Deus fará a sua”, refletiu Amaral.

Sobre a precedência da vida sobre todas as outras coisas, com alguns sacrifícios atuais e pela frente, como dificuldades sociais e econômicas, o presidente da APM reitera a necessidade de termos resiliência, como mencionou o padre Anísio Baldessin.

O afastamento social, ilustrado pelo sheikh Jihad Hassan Hammadeh e pelo pastor presbiteriano Aílton Gonçalves Dias Filho, é necessário para encontrar solução dos problemas. “O que ouvimos dos nossos líderes religiosos hoje traduz o linguajar médico para o linguajar da alma, preceitos que precisam ser adotados neste contexto. Algumas das mensagens que os senhores nos deixam falam sobre apenas uma verdade, pelos seus diferentes ângulos”, concluiu o presidente da APM.

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