A Academia de Medicina de São Paulo promoveu, na última quarta-feira, 19 de outubro, mais uma edição de sua Tertúlia Acadêmica. Com palestra ministrada por José Carlos Costa Baptista Silva, chefe do Departamento de Cirurgia da Escola Paulista de Medicina/Unifesp, o tema apresentado foi “A complexidade da ética em pesquisa.”
Iniciando a sessão híbrida, transmitida a partir da sede da Associação Paulista de Medicina, o presidente da APM e da AMSP, José Luiz Gomes do Amaral, aproveitou o momento para parabenizar a todos pelo Dia do Médico.
“Esta edição está sendo realizada em uma data interessante, pois ainda estamos celebrando o Dia do Médico. Aos colegas de profissão, minhas felicitações. Após dois anos vivendo uma intensa dificuldade em voltar para a vida médica plena e para as atividades habituais, e estamos certos de que a normalidade daqui para a frente será completamente diferente de antes do desastre humanitário que foi a pandemia de Covid-19”, introduziu.
Teoria x prática
Ao iniciar a apresentação, Baptista explicou que, por ser professor e ter trabalhado durante 12 anos como coordenador de um centro de pesquisa – sendo responsável por ministrar aulas sobre ética e pesquisa de curso – foi possível perceber que ainda existem diversas lacunas dentro do tema e na prática: “Percebemos que a ética em pesquisa com certeza influencia no ensino, é um ponto extremamente importante”.
Citando o acadêmico e historiador Peter Mcphee, o palestrante salientou que o mais importante atributo é que a universidade veja em seus alunos um profundo respeito com a verdade. Em relação à ética, precisam ser capazes de ter pensamentos independentes e de desenvolver seus próprios trabalhos, além do respeito pelos trabalhos dos demais colegas.
Entre os problemas encontrados nas publicações de artigos, o especialista salientou alguns pontos principais, como a pressão para publicar o trabalho e do financiador, falta de supervisão da instituição e de um treinamento adequado e desvio ético e moral. “Também é preciso deixar claro quem são os responsáveis pelas condutas éticas e não éticas em pesquisas. Os autores, instituição, Comissão de Ética e Pesquisa local (CEP), Comissão Nacional em Ética e Pesquisa (CONEP), órgãos de fomento (público ou privado) e países precisam se responsabilizar pelo conteúdo publicado.”
Ainda explicando sobre as falhas nas publicações de artigos, Baptista destacou três vertentes inaceitáveis durante o processo de revisão e publicação de materiais, entre elas fabricação, falsificação e plágio. A primeira se baseia no conceito de fabricar resultados sem tê-los; já a falsificação consiste na manipulação de materiais de investigação, equipamentos ou processos, alterar ou omitir resultados de tal forma que a pesquisa não é representada com precisão no registro. Por fim, o plágio é a apropriação de ideias de outros, processos, resultados, ou seja, sem dar o devido crédito.
“Outro ponto importante é a duplicidade de artigo, quando o indivíduo sabe que precisa aumentar o número de artigos em seu currículo, realiza um trabalho e o publica em diversos veículos. No entanto, a prática só é permitida quando se há protocolos, o que não implica no ponto de vista ético, além da autorização de republicação por parte do veículo do artigo original”, comentou.
De acordo com dados expostos pelo especialista, em um estudo internacional sobre a política de alguns jornais e editores em relação à revisão por pares, foi descoberto que não existe uma política homogênea para revisão, e apenas 49% dos veículos fazem revisão para checagem de plágio. “A pesquisa ainda aponta que 95% das grandes revistas permitem que seu revisor sugira ao autor dos artigos que citem os seus trabalhos como sendo algo obrigatório. Além disso, somente 35% dos editores estavam satisfeitos com a política de revisão de pares.” Ele ainda disse ser possível perceber um alto número de publicações retificadas ou retratadas.
Erros e consequências
O professor também trouxe a lista dos dez artigos mais citados após a retratação, entre eles uma publicação de 1998 que defendia a ideia de que vacinas MMR (contra sarampo, caxumba e rubéola) poderiam levar ao autismo. “Na época, e principalmente na Inglaterra, houve um aumento exponencial dessas doenças, pois muitos deixaram de vacinar suas crianças por puro medo e pela divulgação de uma informação errônea, pois anos depois foi comprovado que os dados eram falsos.”
Como consequência, o autor da publicação foi expulso da faculdade em que estudava, já que desacreditou a população de algo que era comprovado, tendo também seu registro médico cancelado por má conduta. “Apesar da Ciência ter comprovado que ele estava errado, a população ainda o aplaudia, principalmente os que eram contra as vacinas. Ainda assim, seu trabalho é citado mais de 1.509 vezes em outras pesquisas, sendo 867 depois da retratação.”
O especialista enfatizou que a maioria das pesquisas retratadas são baseadas em biologia molecular, tendo muitas citações mesmo após serem retratadas, o que gera um problema para o indivíduo que o cita – muito porque não está se atentando em publicar uma pesquisa retratada ou porque simplesmente não se importa em publicar algo que perdeu o valor científico.
Em um exemplo de plágio e injustiça, citou a britânica Rosalind Elsie Franklin, responsável pela descoberta da estrutura do DNA: “Rosalin foi uma brilhante pesquisadora, sendo também a criadora do raio-x da dupla hélice de DNA. Entretanto, antes que pudesse publicar sua tese, foi injustiçada por Maurice Wilkins, um biólogo molecular que trabalhava no mesmo laboratório e se gabou da descoberta”.
Conforme contou, algum tempo depois, a química trocou sua pesquisa sobre DNA por outra sobre vírus. “Wilkins, juntamente com Francis Crick, anunciaram a descoberta da dupla hélice e, mais tarde, receberam o Nobel de Fisiologia e Medicina, sem darem os devidos créditos à Franklin. Ela jamais os confrontou e morreu pouco tempo depois, aos 37 anos, vítima de câncer de ovário pelo uso excessivo de raio-x. Um verdadeiro caso de machismo, pois sua história só veio à tona após o seu falecimento”, complementou.
Concluindo, o palestrante salientou que as palavras que circulam a vida são verdade e mentira, inveja e ódio e, citando Platão, enfatizou que ninguém é mais odiado do que aquele que fala a verdade.
Encerrando a sessão, Amaral complementou as falas de Baptista, salientando que aquele que não participou da metodologia não pode fazer um artigo, pois é o fator principal em um trabalho. “Temos aqui um problema de insuficiência científica. Quando você falha com a ética, há também uma insuficiência de caráter. Quando o autor percebe que houve um erro, retira e corrige a publicação, é algo para ser aplaudido, pois poucos têm a segurança e a grandeza de reconhecerem o erro. A impunidade é chocante, já que todos esses desvios também mostram uma falta de compaixão. Quando a pesquisa impacta a vida de tantas pessoas, ficamos estarrecidos e nos envergonhamos enquanto profissionais de Saúde. A palestra me deixou bastante entusiasmado pela importância de nos reposicionarmos”, concluiu.
Texto: Laís Vasconcelos (sob supervisão de Giovanna Rodrigues)
Fotos: Marina Bustos