Gonzalo Vecina Neto – O acesso universal a saúde é o que torna um país civilizado

Para o ex-presidente da Anvisa, a população brasileira foi promovida à condição de cidadã a partir de 1988

Entrevistas

Ex-secretário municipal de Saúde de São Paulo e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gonzalo Vecina Neto é uma das figuras mais importantes quando se trata de pensar o Sistema Único de Saúde. O também professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo é um entusiasta do sistema e propõe, a seguir, alternativas para que sejam encontradas soluções para os gargalos da saúde pública.

SISTEMA UNIVERSAL

Um país não é civilizado se não houver um sistema universal e gratuito de Saúde, como têm os principais países do mundo. O SUS é necessário para que atendamos 100% da população. Conseguiu cumprir as promessas de universalidade, integralidade e equidade? Não, mas trouxe imensos avanços. Em 1988, quem não tinha plano de saúde e previdência social era chamado de indigente. Houve, então, promoção dos brasileiros à condição de cidadãos, com a criação do SUS.

Também tivemos avanços fundamentais na cobertura vacinal e no enfrentamento de grandes endemias. O modelo de participação social do SUS é, em grande medida, responsável pela construção de ações como o tratamento e o acompanhamento do portador da Aids, outro avanço enorme, um dos melhores do mundo.

“Há um problema no modelo de governança do Brasil que afeta o Ministério da Saúde: a democracia de coalização. Enquanto existir, teremos esse ‘toma lá, dá cá’.”

PRECISA AVANÇAR

A mortalidade infantil reduziu muito, mas ainda perdemos 14 crianças no 1º ano de vida a cada mil nascimentos. Em países desenvolvidos, esse número é dois ou três. Uma parte importante da mortalidade neonatal precoce poderia deixar de existir se as mulheres pudessem abortar. Isso porque muitas das gestações são inviáveis. Seria ótimo que fosse respeitado o direito ao aborto, como em todos os países desenvolvidos. Não temos, ainda, uma rede de serviços de saúde que atenda com prontidão casos de infarto e acidentes cardiovasculares, que hoje são responsáveis por 35% da mortalidade. Também não há um sistema adequado de atendimento ao câncer.

FINANCIAMENTO E ESTRUTURAÇÃO

O Brasil aplica pouco dinheiro em saúde pública. Menos que os vizinhos da América do Sul, no investimento per capita. Precisamos reestruturar o sistema de saúde para que não haja a fragmentação que ganhamos graças ao modelo de municipalização autárquica. Apenas 9% das cidades têm mais de 100 mil habitantes. Não pode existir um hospital em uma cidade de 50 mil habitantes, é necessário escala. Temos que repensar a regionalização do modelo e a regulação de acesso. Temos que garantir acesso das pessoas em todos os níveis. É um problema complexo, pois envolve discussão política entre estados e municípios de maneira não partidária.

INDÚSTRIA

Outro ponto a ser tratado é a produção de insumos e medicamentos. Temos que ter políticas mais eficazes para ter, de fato, uma indústria nacional. Porque é um grande mercado. Cerca de 10% da economia nacional é movimentada pela Saúde, que também gera 2 milhões de empregos. Hoje, temos parcerias de desenvolvimento produtivas (PDPs) muito maltratadas. Precisamos dar importância a elas, que podem desenvolver a capacidade de produzir ciência, tecnologia e inovação.

CRISE FINANCEIRA E SOCIAL

O Brasil não tem uma crise econômica tão importante quando a de confiança. Precisamos de um bom Governo, com bons quadros parlamentares e políticos. Congelar investimentos por 20 anos é uma bobagem para inglês ver. Não existe sociedade civilizada sem um Estado. Precisamos de justiça social e aí está incluída a Saúde, bem como a Educação, a moradia, o transporte e a segurança.

FORMAÇÃO

Temos que melhorar esse ponto em nossos médicos. Estamos formando muito mal. O Estado e o Ministério da Educação têm que se preocupar com a qualidade dos graduandos do País. Temos que os avaliar não apenas depois de formados, mas durante o 2o, o 4o e o 6o anos, com residência médica obrigatória antes da atuação profissional. Se tivermos quantidade de médicos adequada e bem formados, iremos resolver em grande medida os vazios que temos, inclusive. E também precisamos de políticas adequadas de alocação desses profissionais – não são simples, mas é possível e existem instrumentos para a implantação.

INFLUÊNCIA POLÍTICA

Temos que fazer uma reforma política, junto da sociedade, para construir um novo modelo, que traga melhor qualidade de vida à sociedade. O Sistema Único de Saúde, entretanto, não precisa de nenhuma reforma. Precisamos de mais SUS! E de um modelo mais honesto de financiamento, além de políticos nos quais a sociedade possa confiar para administrá-lo. Não há espaço para modelos alternativos, planos de saúde populares etc.

GONZALO VECINA NETO – Administração hospitalar e sistemas de saúde
CARREIRA – Secretário municipal de Saúde de São Paulo (2003 e 2004), presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (1999 a 2003) e superintendente corporativo do Hospital Sírio-Libanês (2007 a 2016)
OCUPAÇÃO – Professor assistente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo

Entrevista publicada na Revista da APM – edição 696 – janeiro/fevereiro 2018