Preocupado com o rumo do País diante das políticas de contenção de investimentos, o promotor conversou com a Revista da APM sobre a criação de planos populares ilusórios, o que enxerga como um desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS), e o papel do Judiciário na questão da judicialização da Saúde, entre outros temas. Confira a seguir.
Como o senhor enxerga a Saúde brasileira hoje?
Com muita preocupação. Há um agravamento do subfinanciamento do SUS a partir da PEC 55, que congelou os gastos da Saúde, da Educação e de todo o patrimônio público por exatos 20 anos. O que teremos a partir de 2018 é uma queda de investimentos do Governo Federal na área da saúde pública. Se por um lado você agrava o subfinanciamento, por outro você traz ao SUS uma leva de pessoas que não têm mais condições de pagar os planos de saúde. Hoje, onde você olhar, vai encontrar problemas graves em unidades de saúde. O momento, então, é de enorme preocupação, acrescido do fato que não se percebe esta consternação do Ministério da Saúde e do Governo Federal.
Tem acompanhado a criação dos planos de saúde populares?
O que pensa? A política de desmonte do estado social de direito é claríssima como a luz solar. A Constituição de 1988 definiu que o objetivo do Brasil é acabar com a desigualdade, a pobreza e a miséria, e para isso foram criados sistemas de benefícios sociais, como o SUS. A iniciativa dos planos populares é uma falácia, uma venda de ilusão. Pelo que o Governo informa, esses planos terão três configurações e em todas elas o cidadão terá alguns procedimentos básicos, então irá pagar por algo que ele já tem relativamente no SUS. O sistema público funciona bem para a baixa complexidade e razoavelmente na média complexidade. Quando o problema é mais grave é que o acesso ao tratamento via SUS fica prejudicado. Então, você enfrenta filas enormes para operação de vesícula ou cirurgias bariátricas, por exemplo. Mas se um cidadão que paga o plano de saúde popular descobrir que está com câncer, qual situação irá enfrentar? É uma tragédia, pois ele pagou por um plano terrível, que irá tirar dinheiro do pobre que já está perdendo tudo.
Qual a sua análise da saúde paulistana e dos caminhos tomados pelo poder público?
Não se pode falar exatamente em uma questão municipal apartada da questão federal, visto que a crise atinge profundamente todos os entes. Hoje, se você for ver, a saúde pública é basicamente financiada pelo município. Alguns entram com até 35% das receitas na Saúde. A União faz o básico e os estados – que devem investir 12% – colocam em média 12,5% do orçamento no setor. Essa situação impactou todos os hospitais estaduais e municipais. O Hospital São Paulo fechou seu pronto-socorro e está em estado de calamidade pública. O ministro da Saúde afirmou que não daria mais verbas ao hospital, sem saber da realidade da unidade e sem saber se o dinheiro é suficiente. Se você pegar o Hospital Universitário da USP, encontra outra situação terrível. Já a Santa Casa tem um modelo completamente anacrônico. Um hospital dessa importância, com verbas públicas, ser gerido por 50 pessoas que pouco sabem de saúde pública? Não é possível. A atual gestão (e também a última) está tentando mudar o estatuto para modernizar a gestão do hospital. E quando falo de crise em Santa Casa, não é só em São Paulo, mas em todo o Brasil. Ou se modernizam ou fecham.Então, há uma grave crise na cidade que, tendo em conta o cenário do País, tende a se agravar
Quanto à questão da judicialização da Saúde, qual a sua avaliação?
A judicialização veio para ficar, pois a Constituição garante que todo aquele que se sentir lesado tem o direito de ir ao Judiciário. No âmbito da Saúde, creio que temos três tipos. A primeira é a criminosa, o conluio entre laboratórios e advogados que entram com ações absurdas visando unicamente o lucro. A segunda é a má judicialização, por exemplo quando se busca tratamentos experimentais, que na verdade são vendedores de ilusões para a sociedade. A terceira judicialização é a que considero boa, ou necessária, como algum medicamento que está na Rename do SUS, portanto aprovado pela Conitec, mas não está disponível nos postos de saúde. Nesse cenário, o usuário tem o direito e o dever de entrar com uma ação buscando o medicamento. Ou em casos de necessidade de cirurgias de urgência que devem ser realizadas pelo SUS ou de pessoas com câncer não tratadas dentro dos prazos legais da doença. Então, nem toda intervenção judicial deve ser condenada.
A política de desmonte do estado social de direito praticada atualmente no Brasil é claríssima como a luz solar
E como evitar as judicializações desnecessárias?
Eu faço parte do Conselho do Fórum Nacional de Saúde Pública e, em outubro passado, foi aprovada uma resolução que determina que cada tribunal terá que criar um sistema de assessoria que chamamos de Núcleos de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus). Esse sistema é formado por profissionais que não sejam das secretarias de saúde e podem ser de universidades ou de hospitais que não sejam vinculados às secretarias. O intuito é que os médicos auxiliem os juízes em suas deliberações em um prazo de até 72 horas. Por exemplo: alguém entra com uma ação buscando um determinado medicamento e o juiz, ao invés de analisar imediatamente a questão, encaminha a solicitaçãoao NAT-Jus. O grupo avaliará a questão e dará um parecer ao juiz. É evidente que o juiz pode ou não seguir esse parecer, mas é um instrumento de auxílio na deliberação. Essa ideia tem o intuito de fazer com que a boa judicialização tenha guarida e a má seja afastada. O NAT-Jus já está funcionando em locais como Paraíba, Rio Grande do Sul e Minas Gerais.
Pode contar um pouco sobre a atuação do Fórum Nacional da Saúde?
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o criou em 2016. O Fórum é formado por um promotor – no caso, eu –, um defensor público, representantes do Judiciário Federal e estadual, pessoas que tem expertise em saúde pública e profissionais do Ministério da Saúde, do Conselho Nacional de Assistência Social (Conas) e do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). Este grupo se reúne a cada dois ou três meses e discute um determinado ponto. O primeiro foi a questão da judicialização. Durante um ano, então, discutimos o tema, fizemos uma resolução e a implantamos. Agora, estamos estabelecendo uma política para colocar o NAT-Jus de pé em cada tribunal. Na próxima reunião, iremos estabelecer um segundo ponto da saúde pública que mereça um tratamento especial do CNJ. Já temos várias ideias.
Entrevista publicada na Revista da APM – edição 688 – maio 2017
Foto: Osmar Bustos