Graduada em Medicina pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e com residência em Cirurgia Geral e Pediátrica pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp), Maris Salete Demuner é coordenadora do projeto Saúde e Cidadania em Fronteira, cuja missão é prestar atendimento voluntário à população ribeirinha do Amazonas, além de ser professora afiliada de ensino da EPM e chefe de plantão do Pronto Socorro de Cirurgia Geral do Hospital Universitário.
Porque escolheu a Medicina?
Escolhi a Medicina por dois motivos: pela vontade de servir e pela paixão por ensinar. Com o projeto Saúde e Cidadania em Fronteira, que presta atendimento voluntário à população ribeirinha, eu consigo aprender, ensinar e servir ao mesmo tempo, e, consequentemente, me sentir realizada como médica.
Quais barreiras você teve de enfrentar ao longo da sua formação?
Nasci em uma cidadezinha do interior do Espírito Santo chamada Santa Júlia. Meus pais eram lavradores que, apesar da simplicidade e das dificuldades que a vida lhes impôs, souberam me ensinar que a arte de viver com dignidade só é possível quando observamos os princípios da humildade, honestidade, gratidão e dedicação. Sem sombra de dúvidas, a minha primeira luta foi ter de sair da casa dos meus pais para poder concluir o ensino médio e superior na cidade de Vitória, capital do estado. Sempre aprendi a viver com recursos financeiros escassos, de modo que toda a minha formação foi em institui- ções públicas. Comecei a cursar Medicina na Universidade Federal do Espírito Santo depois de prestar três vestibulares. A Residência Médica também foi difícil, porque tive que vir sozinha para São Paulo.
Como soube do projeto Saúde e Cidadania em Fronteira?
Em 2012, durante uma cerimônia para homenagear professores aposentados da EPM/UNIFESP, o então diretor da Escola Paulista de Medicina, Professor Antônio Carlos Lopes, mencionou que a instituição estava fazendo parcerias com as forças armadas brasileiras, e eu fiquei bastante interessada no assunto, pois não imaginava o que isso tinha a ver com a área da Saúde. Depois de pedir mais detalhes, o professor me explicou que a Marinha tinha navios hospitais, nos quais atendia populações carentes na Amazônia, e eu pedi para participar de uma expedição. Então, nós fomos até a Marinha, conhecemos os navios e montamos a primeira missão para reconhecimento do local. Levamos uma equipe com quatro alunos do sexto ano de Medicina, quatro residentes das grandes áreas e quatro especialistas. Continuamos fazendo isso até hoje e já atendemos mais de seis mil pacientes. Na realidade, o nome Saúde e Cidadania em Fronteira foi escolhido por mim, pois, na primeira viagem para a Amazônia, percebi que a população ribeirinha necessitava de saúde no sentido mais amplo da palavra, e de ações de cidadania, não só de assistência médica e odontológica.
A falta de estrutura, de programas de desenvolvimento profissional e a distância dos grandes centros são fatores que desmotivam a fixação do médico
E como funciona o projeto?
Uma vez por ano, montamos uma equipe de alunos do sexto ano de Medicina, residentes e preceptores das áreas de Clínica Médica, Dermatologia, Ginecologia, Cirurgia e Pediatria, e nos deslocamos até Manaus, onde somos alojados pela Marinha nos navios de assistência hospitalar. Lá, nos juntamos a uma equipe de saúde composta por enfermeiros, dentistas e um médico. Então, navegamos através dos rios da Amazônia prestando atendimento médico e odontológico onde houver vidas. Com essas missões, temos o objetivo de ampliar o serviço prestado pela Marinha do Brasil na região Amazônica, a fim de levar tratamento de qualidade e com dignidade para a população.
Como coordenadora do projeto, quais são as suas principais funções?
A coordenação se baseia em programar junto à Marinha as missões, selecionar os alunos, residentes e preceptores, levantar recursos financeiros para o deslocamento da equipe de São Paulo para Manaus e coordenar toda a parte assistencial durante as missões, em conjunto com a equipe de Saúde dos navios. Por iniciativa dos nossos alunos, criamos uma Liga Acadêmica, que reproduz cenários parecidos com aqueles que encontramos na Amazônia. A finalidade é nos preparar para o atendimento. Nesta liga, contamos com cinco ambulatórios e os pacientes são atendidos toda quarta-feira. Os alunos que participam da liga têm preferência para as missões.
Qual a importância dessa ação na vida da população ribeirinha?
Inúmeras tentativas foram realizadas pelas esferas governamentais para tentar fixar profissionais nessas localidades. Contudo, acredito que a falta de estrutura, a inexistência de programas de desenvolvimento profissional e a distância dos grandes centros são fatores que desmotivam a fixação do médico. Assim, o projeto leva profissionais qualificados às regiões remotas da Amazônia. Além disso, os alunos e residentes que participam desse programa vivem uma verdadeira experiência de cidadania e compreendem que praticar a Medicina é muito mais do que atender pacientes em um estabelecimento de saúde com toda infraestrutura de última geração.
Além da Amazônia, pretendem levar o projeto para outras regiões do Brasil?
Sim, pois o nosso lema é levar saúde com qualidade e dignidade onde houver vidas. Temos muitas dificuldades, mas elas não irão impedir a expansão do projeto. Já estamos atuando em comunidades Quilombolas no Vale do Ribeira, em São Paulo [região conhecida como a Amazônia Paulista], ao lado de um grupo de alunos do segundo e terceiro anos e temos o apoio de estudantes do sexto ano, residentes e da atual diretora da EPM, Professora Emília Inoue Sato, além de outros profissionais.
Fotos: Osmar Bustos
Entrevista Publicada na Revista da APM – edição 687 – abril 2017