Graduada em Medicina pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e com mestrado em saúde coletiva pela Universidade Estadual da Paraíba (EUPB) – além de doutorado em saúde materno-infantil pelo Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip) e em tocoginecologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) -, Adriana de Oliveira Melo foi a responsável pela primeira pesquisa que estabeleceu a relação entre o vírus da Zika e o surto de casos de microcefalia no Nordeste.
Sempre quis ser médica? E como surgiu o interesse pela Medicina Fetal?
Eu nunca pensei em outra profissão, na minha cabeça sempre esteve claro que faria Medicina. De todas as especialidades, gosto de Obstetrícia porque trata da vida. Você participa do processo de trazer uma criança ao mundo. A gravidez é um momento de muita felicidade e o meu papel é apresentar o filho aos pais.
Enfrentou muitas dificuldades na sua trajetória, desde a vida acadêmica até o trabalho que desenvolve atualmente?
Tenho 46 anos de idade e de luta para me estabelecer. Enfrentei muitas dificuldades porque não sou de ficar calada com as coisas que vejo. Por todos os lugares por onde passei, eu assumi uma causa. O problema é que quando você faz isso as pessoas recuam e passam a te ver mal. Para mim, a maior dificuldade é ter esse perfil no Brasil e saber que as coisas, na maioria das vezes, não são justas. Hoje vivenciamos isso: nem sempre o melhor médico será o mais bem remunerado. Quando você chega a um lugar, precisa lutar para conquistar o seu espaço. Também percebi que, por ser mulher, é mais difícil para mim ser ouvida.
Porque escolheu ir para o campo da pesquisa?
A pesquisa sempre me encantou desde a época do colégio, quando participei da primeira feira de ciências da minha cidade. Eu nunca gostei de apenas reproduzir conhecimento, gosto de participar de sua formação e de testá-lo para ver se está adequado à nossa realidade. O mestrado em Saúde Coletiva me ajudou nesse aspecto porque me deu uma boa visão de saúde pública e me fez abrir os olhos não só para a pesquisa aplicada em laboratório. Foi importante porque aprendi a não me contentar em somente pesquisar, sem devolver nada à sociedade.
Como surgiu a ideia de montar o Ipesq (Instituto de Pesquisa Professor Joaquim Amorim Neto)?
Depois que terminei o mestrado, confirmei que, infelizmente, as faculdades do Nordeste não têm essa visão de pesquisa, só de assistência. O professor não tem estímulo para ser pesquisador. Foi pensando nisso que eu e mais colegas resolvemos criar um instituto de pesquisa independente, formado por pesquisadores de Recife e Campina Grande e que hoje é motivo de muito orgulho. Começamos a fazer pesquisas com pouca estrutura e quase nenhum recurso. Mas, mesmo assim, os nossos estudos têm tido impacto no mundo. Foi assim com o Zika.
Temos que entender melhor a doença e estudá-la mais, pois existem casos mais severos e menos severos, em níveis diferentes
Como foi o seu primeiro contato com o vírus?
Naquela época, eu atendia uma gestante que estava bem. Em uma das consultas, notei que começaram a aparecer coisas estranhas, como o cerebelo alterado. A paciente voltou duas semanas depois e constatei que a cabeça não tinha crescido e que havia aparecido outros sintomas, como a calcificação. Então, pedi para coletar líquido amniótico e fazer uma pesquisa de doença genética, além de ressonância para avaliar melhor o cérebro do feto. Pouco tempo depois começaram a aparecer casos similares em Pernambuco. Conversei com a paciente e pedi mais detalhes de como tinham sido seus últimos dias, e ela mencionou que havia tido sintomas como manchas vermelhas na pele e coceira. Passei a pesquisar informações e me deparei com o Zika vírus, além de notícias da Síndrome de Guillain-Barré, outra doença decorrente dele que afeta o sistema nervoso e está ligada à microcefalia. Em seguida, procurei a Fiocruz e pedi para eles fazerem um teste. Dias depois, soube que o resultado era positivo para Zika. No entanto, o Ministério da Saúde não considera esse o primeiro caso de microcefalia associada ao Zika vírus por conta do Ipesq não estar entre os institutos cadastrados ao órgão.
Qual a análise atual do Zika vírus e microcefalia?
Entre 2016 e 2017, temos menos de 10% dos casos confirmados, o que é uma queda muito grande, comparado com 2014/2015. É muito bom termos esse ‘respiro’, mas não podemos baixar a guarda, pois o vírus pode voltar a qualquer momento, a exemplo do H1N1. Enquanto isso, temos que entender melhor a doença e estudá-la mais, pois existem casos mais severos e menos severos, em níveis diferentes. Por exemplo, há casos de microcefalia em que a cabeça da criança tem tamanho normal. Na realidade, o termo microcefalia não deveria ser usado [confira matéria na edição 687 da Revista da APM]. O que temos no Zika é uma microencefalia, porque, em todos os casos, o encéfalo é menor, mas a cabeça pode ou não ter tamanho alterado, dependendo da quantidade de líquido que houver dentro. Temos esperança de que, ao aumentar o estímulo das crianças com fisioterapia, possamos melhorar o processo de migração neuronal. Essa é uma hipótese que queremos provar futuramente.
Como é a situação na Paraíba das crianças e famílias que foram afetadas pelo Zika?
A Prefeitura de Campina Grande montou um serviço no qual as crianças acometidas pela microcefalia fazem fisioterapia. A verdade é que quando estávamos pesquisando e vimos as ressonâncias, achávamos que essas crianças ficariam em cima de uma cama. Só que quando nasceram, começamos a ver que elas reagiam. E essa reação ia aumentando conforme recebiam maior estímulo. Agora, faz parte da nossa luta mostrar que esses bebês precisam de mais sessões de fisioterapia, no momento em que o cérebro ainda está se adaptando, porque depois ele vai perder essa capacidade de estímulo. Infelizmente, a maioria das crianças só pode fazer fisioterapia duas vezes por semana pelo SUS. Pensando nisso, o Ipesq está montando uma sede de assistência, para oferecer fisioterapia intensiva. O nosso sonho é que as crianças possam receber assistência todos os dias. Mas, para tornarmos isso realidade, precisamos de ajuda. Por isso, estamos lançando um programa de apadrinhamento, no qual cada criança pode ser ‘adotada’ por até dez padrinhos que contribuam com R$ 100,00 por mês. Não podemos dizer que essa é uma geração perdida. Só será se não cuidarmos dessas crianças.
Fotos: Osmar Bustos
Entrevista publicada na Revista da APM – edição 687 – abril 2017